domingo, 27 de agosto de 2017

Requiesce in pace

O meu pai morreu! Essa é a primeira vez que consigo formar e verbalizar essa frase. Após dois anos consigo pensar nisso e não questionar minha realidade, não sentir náusea, não ouvir em minha mente os bips dos aparelhos. Foram dois anos não querendo verbalizar um fato. Muitas vezes eu fugi para não o pronunciar, outras vezes a minha expressão era suficiente para que o outro entendesse (obrigada àqueles que entenderam). Foram sete dias na UTI, dias em que tive a absoluta certeza que passariam, mas não que seriam os últimos. Acreditei tanto na melhora do meu pai que quando ouvia das pessoas para “me preparar” sentia raiva. Eu não me preparei, até porque acho que ninguém consegue de fato se preparar para isso. Até mesmo após o fatídico telefonema eu me mantive em certo transe, que só tenho consciência dele agora.
Meu pai foi meu e de mais duas lindas mulheres que até hoje não sei bem como passaram por esse processo. Fui egoísta não por falta de amor, mas por falta de estrutura. Não sabia nem como eu estava passando por isso. Tem coisas que não sei falar, sei apenas escrever. Lidar com a morte não é como sentar numa mesa e discutir uma relação com os pensamentos e sentimentos bem definidos e estruturados. 
Meu pai foi um homem que viveu como queria. Como todos, construiu seu caminho, teve seus desejos, sonhos, erros e acertos. Foi um existencialista mesmo sem se dar conta de que o era. Não esteve presente fisicamente em várias e diferentes épocas da minha vida, mas eu sabia que ele estava lá - e o saber faz toda a diferença. 
Com ele meu papel de filha também morreu. Apesar de ainda ser filha de minha mãe, a filha do pai se foi. Precisei rever esse papel existencial. Não há como substituir, tem que deixar ir e aceitar. Em um enterro você não sepulta apenas um corpo, mas vai junto uma infinidade de coisas.
Com a morte do meu pai eu aprendi o que é o arrependimento, aquele verdadeiro, não o que você sente por ter comido além da conta. É um real nó no coração. Vi desaparecer um complexo, sendo eu a Electra, e com ele uma grande representatividade. O que ele era para mim, era somente para mim e entendo que muitas pessoas não entendem isso. Eu respeito. Acontece que o mundo é de um jeito diferente para cada um e nesse mundo cabe um zilhão de sentimentos. 
Eu não disse para o meu pai tudo o que queria. Não lavei toda nossa roupa suja, não chorei o quanto eu queria, não o abracei o quanto nós dois merecíamos. Eu não cumpri algumas promessas, mesmo sabendo que ele não iria me cobrar. Eu não as cumpri e isso tem seu peso. Me dei conta que não pensei no tempo e não vi que ele passava. Percebi que dei valor para coisas que eu poderia ter deixado pra lá e não vou poder dividir tudo isso com ele. Com um bocado de ideias tortas e um muro para ultrapassar, entendi que eu precisava me perdoar. E quando finalmente me perdoei, consegui perdoá-lo.  
Com a morte do meu pai eu aprendi que viver é preciso, obrigatório e necessário; que quero ser eu mais do que nunca. Entendi que algumas coisas são como são, outras nunca serão o que queremos e que se quisermos podemos mudar algumas tantas outras. Aprendi que as pessoas são apenas pessoas e que, como eu, estão tentando viver, sobreviver, atravessar, superar e não enlouquecer. Estamos todos atravessando o mesmo oceano a nado livre. 
Com a morte do meu pai eu passei a olhar diferentemente para minha mãe e para aqueles que tanto amo, olhei diferentemente para mim e para aqueles que o amavam e me senti grata pela existência dessas pessoas. Aprendi a viver melhor e não vou tentar não cometer erros, pois seria estúpido, hipócrita, desumano. Aprendi que os pais ensinam mesmo quando morrem.