sábado, 17 de novembro de 2018

Consciência negra: não é apenas um dia, mas um chamado à reflexão, os professores podem contribuir

Prof. Dr. Márcio Jean Fialho de Sousa
Universidade de Montes Claros - UNIMONTES
E-mail: pcopmarciojean@gmail.com

O Dia da Consciência Negra é uma data bastante importante para refletir especificamente sobre a importância dos negros para a constituição da cultura nacional e, acrescento ainda, é um momento para homenagear todos àqueles que sacrificaram e renderam suas vidas por esta terra chamada Brasil.
Diante disso, vale pensar sobre os preconceitos e racismos que, ainda hoje, a comunidade negra tem sofrido no seu cotidiano. Muitas vezes esse sofrimento nem chega a ser resultado de agressões físicas, o que não deixa de acontecer também, mas vêm de onde não se espera, e de pessoas que, muitas vezes, também nem se dão conta de que seu discurso pode estar à serviço da propagação de preconceitos e racismos resultantes de uma história que teve início há muitos séculos antes.
Na escola, por exemplo, o papel do professor é de extrema importância para que o respeito às diferenças possa ser propagado. Esse cuidado pedagógico, porém, deve estar sempre preocupado com parâmetros que valorizem o ser humano por ser humano e não por pertencer a esta ou aquela etnia, raça, gênero, nação ou língua. Desse modo, o discurso educacional empregado nas salas de aula, pelos professores, é responsável por grande parte da formação das crianças em sua fase de formação cognitiva. Isso ocorre porque o professor, na escola, é o modelo de adulto que a criança tem referência, e nele se espelhará muitas vezes. Por isso, a responsabilidade do professor de educação infantil e das séries iniciais, por exemplo, é decisiva para toda a carreira acadêmica da criança e para a formação da sua cidadania — claro que os pais têm maior responsabilidade nesse processo, porém não é possível ignorar a ação dos professores nesse ínterim. 
Desse modo, urge que se faça um debate acerca dos discursos educacionais como formadores de conceitos. Para isso, lançarei mão de dois textos literários, a saber “A menina Vitória”, de 1965, escrito pelo angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de Silvana Martins, escritora afro-brasileira, para ilustrar como a educação pode ser propagadora de valores que elevem o ser humano à sua verdadeira dignidade e como, ao mesmo tempo, pode ser propagadora de valores que excluem o negro da sociedade, vendo-o como inferior. 
Os estudos africanos e afro-brasileiros têm ganhado espaço nos diversos meios educacionais de modo progressivo. Esse fato deve-se, em grande parte, às leis 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008, que regulamentam e obrigam o ensino básico da educação nacional a incluir no currículo oficial da rede a temática da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. 
A lei de 2003, em seu inciso 2º, dispõe que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, “em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” — o mesmo é dito no inciso 2 da lei 11.645. Deste modo, sendo a Literatura a expressão de um povo, ao mesmo tempo em que nasce de determinado povo, dando voz aos aspectos de sua identidade, de seus valores e crenças, é lícito que os professores deem voz ao povo que foi silenciado por séculos a fio, mas que ao mesmo tempo, de modo diferente ao realizado pelos europeus que aqui chegaram e se instalaram, foram também responsáveis pela formação da nação brasileira, passando desde a formação do português brasileiro, até às tradições, culinária e o jeito brasileiro de ser.
Ocorre que essas leis são apenas os primeiros passos para uma mudança profunda nas estruturas educacionais, e essa transformação não ocorrerá de uma hora para outra, será necessário ainda percorrer um grande caminho para a mudança de toda uma estrutura cultural que há séculos vinha sendo propagada, vivenciada e perpetuada na e pela história. 
Segundo Ruth Amossy, a construção de um discurso e sua aceitação se desenvolvem por meio de estereotipagem, ou seja, o destinatário do discurso avalia a mensagem veiculada a partir de um modelo pré-construído dentro de categorias por ele difundida e no interior da qual ele a classifica. Em outras palavras, o público não avalia apenas o discurso, mas o lugar do qual ele é produzido (AMOSSY, 2005, p. 125-126). Sendo assim, se o produtor do discurso é um professor, socialmente, seu posicionamento estereotípico é de autoridade, por isso tem grande peso e importância o que ele diz. Daí a autoridade, a validação e o compromisso do discurso do profissional da educação. 
Nesse sentido, estão de acordo Kabengele Munanga e Maria Antonieta Alba Celani ao afirmarem que a constituição da identidade de um indivíduo e de um povo se dá por meio da linguagem. Para Munanga, a linguagem é também uma das manifestações mais próprias de uma cultura, pois longe de ser apenas um veículo de comunicação objetiva, é testemunho das experiências adquiridas por um povo, compõe sua memória coletiva e seus valores (MUNANGA, 2005-2006, p. 48). Celani, por sua vez, endossa essa perspectiva na medida em que afirma ser a linguagem uma ferramenta psicológica, necessária para o estabelecimento das práticas sociais, e é nessas práticas que o indivíduo se constitui como ser humano (CELANI, 2005, p. 43). É nessa perspectiva que será analisado o discurso educacional presente nas narrativas selecionadas para este estudo, elencadas no início desta comunicação.
Os contos “A menina Vitória”, de 1965, do angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de 2015, da escritora afro-brasileira Silvana Martins, apresentam narrativas ficcionais de formação que exemplificam situações que representam a realidade nas escolas quanto ao poder do discurso pedagógico, recorrentes em sala de aula, e que precisariam ser repensadas pelos profissionais da educação com o intuito de promover o respeito e a convivência com a diferença. 
No texto de Arnaldo Santos é apresentada a história de uma menina negra que ascende socialmente ao se tornar professora, ficando conhecida como a menina Vitória, professora da 3ª classe.
[Ela] era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas (SANTOS, 1985, p. 83).
Vale notar que este conto foi escrito no período em que Angola ainda era colônia portuguesa, visto que a independência do país se deu, oficialmente, no dia 11 de novembro de 1975 e o texto é de 1965. Fato importante a ser notado, pois isso implica dizer que saber que a menina Vitória é uma negra que teve acesso à educação formal e, além disso, ter estudado na Metrópole, unido ao esforço de se parecer branca, sempre renovando o pó-de-arroz, e a preferência pelos alunos com fenótipos europeus a coloca no lugar de uma assimilada. 
Essa categorização do termo assimilado foi designada pelo governo português, no ano de 1926, atualizada em 1929, e reforçada no Acto Colonial, promulgado em 1930. Segundo consta, e a critério do governo, o assimilado 
[...] tinha de ter 18 anos de idade, demonstrar que sabia ler, escrever e falar português fluentemente, ser trabalhador assalariado, comer, vestir e ter a mesma religião que os portugueses, manter um padrão de vida e de costumes semelhante ao estilo de vida europeu e não ter cadastro na polícia (ZAU, 2015). 
Os que não se encaixassem nessa descrição eram designados indígenas. Deste modo, ainda que negra, a menina Vitória sentia-se branca e agia como uma europeia, inclusive humilhando e rebaixando seu povo, como se tivesse esse direito e como se não pertencesse a ele. Ao receber o novo aluno Gigi, que tinha uma pronúncia ruim do português, mas que consegue acessar a escola por meio do muito esforço feito pelo pai que queria vê-lo secretário, a professora olha-o com desconfiança e o coloca no fundo da sala junto a outra criança negra, chamado Matoso e que se tornara adjetivo, na boca da professora, para determinar tudo o que fosse ruim e desprezível na sala de aula: “ ‘Pareces o Matoso a falar...’, ‘Sujas a bata como o Matoso...’, ‘Cheiras a Matoso...’ – e ele [o Matoso] guardava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos” (SANTOS, 1985, p. 83) da professora, tudo isso porque, além dela tê-lo recebido mal, desde a primeira aula, “não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso” (SANTOS, 1985, p. 83). O relacionamento da professora piorou ainda mais quando, certa vez, Matoso a respondeu em quimbundo dizendo “O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” (SANTOS, 1985, p. 83). 
Desse modo, a afronta à professora assimilada seria excessiva, afinal, além de não se reconhecer entre os seus, ela ainda teria sido insultada em uma língua destinada aos indígenas, classe subalterna, colonizada e pobre. Porém, deixando de assumir seu papel de educadora, afinal estava apenas para promover a manutenção do status quo, o que fazia ela era ir jogando pela sala o nome do aluno com crueza, “criando um símbolo maldito” a partir da figura da criança.
Mediante a indiferença da professora, Matoso acaba por exteriorizar sua real cultura, seus valores, ao utilizar o quimbundo dirigindo-se a ela. Desse modo, assim como dito por Munanga, a língua representou naquele ato o testemunho de suas experiências, de seu povo (MUNANGA, 2005-2006), logo, mais que o significado das palavras proferidas, o que mais afrontou a menina Vitória foi a língua utilizada, pois esta demarcou a identidade daquele povo, a qual ela também estava inserida e que, de certa forma, fazia parte de sua essência, mas que foi rejeitada por ela.
Por outro lado, sendo a professora a autoridade reconhecida socialmente naquele espaço, restaria ao aluno o recolhimento e a insatisfação por fazer parte daquele lugar. Outros alunos, vendo a situação, acabavam por se retraírem também, limitando sua participação nas aulas o quanto podiam. Gigi, por exemplo, retraiu-se: 
Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. [...] não respondia quando a menina Vitória o chamava à lição, receando o despropósito que o identificasse com o Matoso. [...] diminuía-se ainda mais para não ser notado, esforçando-se num mimetismo impotente por imitar gestos dos meninos da baixa, [e dizia] Tenho que ser como eles (SANTOS, 1985, p. 83). 
Em “A menina Vitória”, o aluno Gigi acaba se limitando cada vez mais no seu desenvolvimento cognitivo, resultado do medo provocado pelas risadas dos colegas diante das correções grosseiras feitas pela professora, sendo assim, “Esvaziava-se das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis” (SANTOS, 1985, p. 84), apenas em casa externava toda a sua insatisfação e insultava com muita fúria a professora. Matoso, com o passar do tempo, já não se debatia, nem chorava, “Apenas no rosto as suas feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a” (SANTOS, 1985, p. 84).
O texto de Arnaldo Santos é capaz de levar o leitor à realidade do contexto da escrita. Por meio de Gigi e de Matoso é possível perceber o sofrimento de um povo oprimido e explorado, tendo como seus maiores algozes não propriamente os colonos portugueses, mas os próprios colonizados trabalhando para a estabelecimento dos poderes aos quais também eles estavam subjugados, tendo, neste caso, o discurso da professora como chancela para a permanência da discriminação e rebaixamento da maioria.
No texto de Silvana Martins, por seu turno, publicado cinco décadas depois, a violência é aparentemente menor que a apresentada por Arnaldo Santos, porém simbolicamente perpetua, de modo camuflado e sutil, os mesmos valores racistas presentes em “A menina Vitória”.
Em “A menina e o lápis de cor”, Silvana Martins retrata o conflito vivido por uma criança negra que mediante a tarefa de desenhar sua família se dá conta de que o lápis “cor de pele” não condiz com a cor de seus familiares, o que traz à discussão o valor dos discursos presentes em termos e referências escolares aparentemente despretensiosas e sem valor ideológico. 
“A menina e o lápis de cor” narra uma situação vivida por uma criança ainda no período da alfabetização: “Ela ainda estava aprendendo as primeiras letras”, informa a primeira linha do conto. Nesse período a criança adorava ir à escola e aprender coisas novas. Era um momento de grandes descobertas que ela levaria para a vida toda. Certo dia, a professora propôs que cada um desenhasse sua própria família. A menina toda contente e satisfeita desenhou toda a família por ordem de altura: o pai, o irmão, a irmã, a mãe e ela. O grande dilema, porém, apareceu no momento em que ia começar a colorir. Foi então que ela perguntou:
— Professora, que cor eu uso para pintar minha família?A professora se aproximou com cuidado, parecia que as palavras ficaram dentro dela. Ela pensou muito e me disse: “Use o cor de pele para pintar sua mãe e você e o marrom ou preto para pintar os outros”.
— Mas professora, esse cor de pele é rosado, e o preto é muito escuro, eu nunca vi gente dessas cores. A senhora já viu?A professora balançou a cabeça e sorriu. Disse docemente:
— Eu nunca vi (MARTINS, 2015, p. 175).
De fato, esta cena é, ou já foi, bastante corriqueira nas escolas, porém, por traz da doçura da professora, ainda que ela não endossasse diretamente a ideia pressuposta, há naquela frase uma classificação racial e preconceituosa de que a cor da pele deve ser aquela cor clara, cuja proximidade estaria na cor rosada, tal como o estereótipo europeu e norte-americano. O problema gerado na discussão, no entanto, não foi resolvido. A criança teve que levar a questão para casa:
— Mamãe, tenho um problema...
— Qual, querida?
— Como faço para pintar minha família, se cada um aqui em casa tem uma cor?Minha mãe sorriu e disse:
— Teremos que comprar uma caixa de lápis com mais cores, que tenha vários tons de marrom.No caminho para casa eu lhe perguntei por que cada pessoa tem uma cor, e minha mãe me explicou, do jeito dela, que papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial. (MARTINS, 2015, p. 176).
Diferentemente da história de Gigi, a menina do lápis de cor teve como contar com a ajuda da mãe que prontamente e com simplicidade, e como a educadora primeira, ensinou à filha que as diferenças existem e sempre existirão, e que cada pessoa se torna especial por suas especificidades, tarefa com que a professora poderia ter contribuído. 
Chegando à escola a menina mostrou o cartaz à professora:
— Pronto, professora, agora como eu escrevo os nomes?Ela pegou meu cartaz e sorriu.
— Sua família é colorida assim?
— Sim, temos negros de todos os tons lá em casa.
— E você, de que cor você é?
— Eu sou negra, professora, como todos os outros lá de casa. (MARTINS, 2015, p. 176).
Como se pode notar, o discurso racista embutido no lápis de cor “de pele” não foi o suficiente para rebaixar e/ou promover maiores problemas para o desenvolvimento cognitivo da menina questionadora, pelo contrário, justamente por características próprias, a inquietação da aluna fez com que ela fosse a procura de respostas com outra pessoa imbuída de autoridade, neste caso, a mãe. 
Dessa forma, a linguagem foi efetiva e afirmativamente empregada para o estabelecimento das convivências sociais, de modo que a criança pode, nesse processo, reconhecer-se como indivíduo distinto, assim como todos os outros o são, mas de modo algum inferiorizada como ser humano, tal como já refletira Maria Antonieta Alba Celani ao discursar sobre o papel da linguagem na constituição do sujeito (CELANI, 2005, p. 43). Pelo contrário, “a identidade do indivíduo vai se constituindo pelo contato com o outro e por meio de uma troca contínua que permite a ele estruturar-se e definir-se pela comparação e pela diferença em um processo de reconhecimento”, acrescenta Alcione Carvalho (2012, p. 88).

Considerações finais

Tentando esboçar algumas considerações finais, vale lembrar que a história da cultura e da valorização do negro no Brasil aos poucos tem ganhado espaço significativo, particularmente, desde o ano de 1933, quando Gilberto Freyre publica a obra Casa-grande & senzala. Sem, no entanto, ter a pretensão de analisar essa obra neste curto espaço que cabe este estudo, essa obra de Gilberto Freyre, de certo modo, foi a responsável por mostrar uma vida real e verdadeiramente humana dos negros, e não distinta das dos outros brasileiros, aqueles que ainda os ignoravam. Claro que muitas questões já foram levantadas sobre a obra, mas não vêm ao caso, o que vale aqui é a ressignificação do negro que a obra propôs. 
Depois dessa divulgação promovida por Freyre, a década de 1970 é a que apresentou novos movimentos sobre as questões étnicas e raciais no Brasil: “Movimentos sociais e a permanência da comunidade negra em revelar o abismo social entre cidadãos brancos e negros existente no país” (CARVALHO. LIMA, 2012, p. 10), inspiradas no movimento pelos direitos civis dos Estados Unidos. Particularmente a partir dessa época, muitas ações positivas surgiram e tem surgido para a valorização da cultura e da história do negro como essencial para a formação da cultura brasileira. 
As mais recentes dessas ações formais deram-se com as leis 10.639 e a 11.645, que têm por fim último a promoção formal e obrigatória dos estudos culturais negros e afro-brasileiros nas escolas de todo o Brasil. De fato, não será, porém, uma ou duas leis que se responsabilizarão para que o que se propõe seja cumprido, mas sua aplicação efetiva, que só será possível se houver profissionais comprometidos e conscientes da importância e do reconhecimento do estudo e da valorização de todos os saberes que compõem a cultura brasileira, particularmente, daqueles que, literalmente, construíram este país com mãos de ferro e costas marcadas. 
Os professores neste processo não são os culpados pela disseminação de inverdades sobre os negros e negras escravizados e violentados, e, por muitas vezes, reproduzirem discursos (pré) conceituosos. Mas, fazendo jus ao seu ofício de ensinar e, muitas vezes, de educar, precisam atentar-se às artimanhas da língua, que por si é ideológica, para que não sejam também os responsáveis pela propagação do ódio, do racismo e da separação entre as pessoas dentro do próprio país e no mundo, pois como disse a mãe da menina do lápis de cor, em sua simplicidade: “papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial”. 


Referências

AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

CARVALHO, Francione Oliveira. LIMA, Dulcilei da Conceição. Relações étnico-raciais: a presença negra no Brasil. São Paulo: Editora Mundo Mirim, 2012.

CELANI, Maria Antonieta Alba. Questões de ética na pesquisa em Linguística Aplicada. In: Linguagem & Ensino. Vol. 8, n. 1. Pelotas, 2005.

MARTINS, Silvana. A menina e o lápis de cor. In: Cadernos Negros – Contos afro-brasileiros. Vol. 38. São Paulo: Quilombhoje, 2015.

MUNANGA, Kabengele. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. In: Revista USP. N. 68. SP: USP, 2005-2006.

SANTOS, Arnaldo. A menina Vitória. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: História e Antologia. São Paulo: Ática, 1985.

ZAU, Filipe. Definição de Assimilados. In: Jornal de Angola. 26 de abril de 2015. Disponível em: http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/definicao_dos_assimiladosAcesso em: 2 de agosto de 2018.


Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES, membro do grupo permanente do PPGL - Estudos Literários, atual Coordenador Institucional PIBID-Capes. Em 2017 concluiu o primeiro Pós-doutorado em Estudos da Linguagem pela PUC-SP e, em 2019, concluiu o segundo pós-doutoramento em Estudos Literários pela UNIMONTES. Doutor e Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo - USP. Possui Especialização em Teologia pela PUC-SP e em Língua Inglesa pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Atuou como professor universitário em diversas IES do Estado de São Paulo. Trabalhou com formação de professores na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo durante cinco anos. Também foi um dos responsáveis pela implantação do projeto Early Bird, ensino de Inglês nas séries iniciais, junto a mesma Secretaria de Educação. Recebeu o Título de Professor Paulista, na Câmara dos Vereadores de São Paulo, em 2017. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas de Língua Portuguesa, Ensino e Estudos da Linguagem, atuando, principalmente, com: Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Comparada, Teoria Literária; Eça de Queirós, Teolinda Gersão, Florbela Espanca (Currículo Lattes). 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Por trás do som #1 - Metrô Linha 743

Metrô linha 743 – Raul Seixas – 1984




Antes de falarmos sobre tudo o que o “Raulzito” conseguiu criticar em uma música que à primeira vista soa inocente ou apenas mais uma daquelas loucuras habituais da década de 1980, vamos falar um pouco sobre quem era Raul e o que estava rolando no Brasil no momento em que esta canção veio a público em seu décimo segundo álbum cujo título é homônimo à música. 
Raul Seixas foi um dos grandes ícones do Rock n’ Roll brasileiro. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1945, Raulzito, como era chamado, cresceu em uma família de boas condições financeiras, tendo acesso a uma boa educação e também aos muitos livros da biblioteca particular de seu pai, onde passou a maior parte da sua infância, segundo ele mesmo. 
Sua infância e juventude voltada aos livros o tornaram um homem com interesse em muitas áreas de conhecimentos como a filosofia, a física, a metafísica, a teologia, a astronomia e muito mais. 
No ano de 1984 o Brasil já havia vivido quase todos os anos de ditadura civil-militar que pôde. Esta, que viria a findar em 1985, teve como suas maiores características a caça e censura aos artistas, intelectuais e, sobretudo, militantes ligados a organizações de esquerda. O Estado Militar, por meio de Atos Institucionais, censurou praticamente toda forma de levar notícias reais ao povo. Todo veículo de mídia era submetido a uma avaliação crítica feita por um militar encarregado. 
Foi no meio disso tudo que surgiu uma música difícil demais para ser censurada, divertida demais para não ser ouvida nas rádios e crítica demais para ser esquecida: “Metrô Linha 743”. 
Vamos à letra:
Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiadoCheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Este primeiro trecho é talvez o mais importante em termos de críticas ao que acontecia no país. O eu lírico da canção é um homem adulto que parece estar um tanto alheio às coisas que estavam acontecendo naquele período e, ao encontrar alguém que estava mais bem informado, começa a ouvir do seu interlocutor, por entrelinhas, os perigos que ambos corriam pelo simples fato de estarem pensando ou conversando um perto do outro.
Ele disse: eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Aqui temos uma das grandes pistas do que está acontecendo no cenário da canção. O homem que estava fumando seu cigarro sente medo de que outra pessoa pare e fume perto dele pois, nos tempos da ditadura, além da constante sensação de estar sendo vigiado pelas polícias políticas, qualquer tipo de reunião poderia soar como um murmurinho a fim de dar inicio a um movimento revolucionário.
Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Nesta parte temos mais uma grande crítica: um Estado repressor e autocrático não confia em intelectuais e jornalistas comprometidos com a verdade. Quando o interlocutor diz que o prato mais caro é “o que se come cabeça de gente que pensa” ele está pura e simplesmente falando que para o governo, intelectuais e universitários eram os mais procurados por conta de sua capacidade de não cair nas propagandas que visavam dar uma falsa sensação de que tudo estaria muito bem no país. Assim como o trecho “Perdi minha pena nem sei qual foi o mês” refere-se ao fato de que todos que exerciam o ofício da escrita, em algum momento, sem aviso ou sem motivo claro eram vedados de publicar em jornais e revistas, desta forma, tendo que procurar outros empregos para sobreviver. “Perder a pena” é uma maneira figurada de dizer que perdeu o direito de escrever já que a pena de nanquim é um dos símbolos da escrita.
O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumandoTrês outros chegaram com pistolas na mãoUm gritou: mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneosEu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aquiOutro disse: não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensandoEu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usandoE aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chãoEu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743
A partir desta estrofe, a canção começa a tomar um caminho mais ilustrativo, onde três homens armados (provavelmente militares pois, ao ser abordado, o sujeito pergunta se é pra entregar seus documentos) abordam o sujeito e, diferentemente do esperado, não querem ver seus documentos ou saber se ele era ou não uma ameaça ao Estado: estes homens querem saber sobre o quê o personagem estava pensando para poder fazer uma análise do valor que se poderia cobrar por sua cabeça, pois como dito “Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando”. Logo após, o sujeito já pode ver seu corpo sem sua cabeça. Ele perde sua cabeça (por cabeça, podemos tomar outros significados como senso crítico, capacidade de duvidar, intelecto) sem sequer perceber o momento em que isso ocorre, sem ser investigado, sem ter cometido crime algum. Aí encontramos a grandiosa crítica sobre a arbitrariedade das prisões no período militar.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tieteFui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôsSenti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou griladoQuem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibaisMas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu DeusCuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocêsEu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743
E, por fim, a estrofe mais pesada apesar de mais metafórica. No início da estrofe o personagem narra sua “cabeça oca” sendo jogada no lixo da cozinha e passando a viver como um cérebro vivo a vinagrete. Ora, para bom entendedor meia palavra basta. Este trecho fala especificamente sobre os cenários de tortura onde o sujeito da música, mesmo quase sem saber o que se passava no país, é confundido com líderes de esquerda e por isso é conduzido por algum militar de escalão médio (na pessoa do Maître) à sala onde seria interrogado. Ao chegar lá ele se vê ao lado de mais dois outros sujeitos, porém estes dois pareciam ser “pratos raros”, ou seja, pessoas muito procuradas pelas forças militares. Seguindo ele diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado” o que denota toda a dor de estar sendo fortemente torturado sem ao menos saber exatamente porque aquilo estava acontecendo. 
Fechando o trecho, o personagem da música deixa um recado póstumo: “cuidado brother, cuidado sábio senhor...” e “eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês”. Aqui temos o recado de que já não havia mais certo ou errado, culpado ou inocente: qualquer cidadão, mesmo o mais desinformado, estava à mercê dos caçadores canibais que, com gosto, devoravam cabeças sem medir a gravidade de seus atos.
Chegamos até aqui e você deve estar se perguntando: “Ora, mas o que isso tem a ver com esse tal Metrô Linha 743?”. Muito simples! Perceba que o nome do Metrô surge de repente e fora de contexto ao final de cada estrofe; e que cada estrofe é uma espécie de denúncia a algum tipo de atrocidade causada pelo governo da época. Esta é a cereja do bolo desta grande lera. O Metrô que surge ao final de cada relato é uma alusão ao que estava acontecendo com os jornais e rádios da época. Com a censura imposta e o controle do governo sobre os veículos de mídia, nada do que acontecia podia ser noticiado, sequer comentado pelas ruas. Para, então, que os jornais tivessem o que falar e para que os brasileiros de regiões mais afastadas vivessem com sensação de que as coisas estavam todas funcionando muito bem, as notícias a que os cidadãos tinham acesso eram sempre relacionadas a alguma obra de Metrô, Trem ou Estrada que estavam sendo construídos ou reformadas para maquiar o desgoverno que se fazia.
Esta canção é uma obra prima do livre pensamento e da resistência contra toda forma de censura e de opressão. É um alerta para que nós, hoje, entendamos que se deixarmos que isso tudo aconteça mais uma vez, seja por apoiar ou por não entender exatamente o que está em curso, em algum momento qualquer um pode se tornar uma vítima pelo simples fato de estar pensando.

Bailarina

Olhos nos olhos me prendem
Quero voar no teu olhar, me entende...
Quero dançar como a bailarina:
pés machucados da caminhada, 
corpo leve das conquistas...
Me dê a mão, às vezes me desequilibro... 

Danço enquanto uma plateia me atira
qualquer coisa que possa me ferir
E quase ninguém que dança comigo
me entrega rosas sem espinhos...
Eu não chamei ninguém para assistir,
chamei você para dançar...
Mas eu entendo: é poético ver a bailarina
sangrando e girando... Respingos...
Tento continuar...

Tantos passos ainda novos
e os velhos que não domino...
Eu danço só... Me dê a mão... Desequilibro...
Vem um vento forte, me empurra...
Voou... Vou...
O vento para... Caio... A chuva me molha...
Os passos escorregam, as roupas pesam, me desvisto...
E me revisto de mim... Danço...
Até que um dia esse espírito me deixe...
Não serei eu, não precisará me dar a mão...
Espírito que voa com o corpo ao chão
Olha que linda, a bailarina na caixinha...
Não sou eu.

Vanuza Alves