segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Brincadeira literária*

As redes sociais são uma fábrica de distrações. A última que tive contato foi em forma de brincadeira literária, e consistia em publicar capas de livros de sua preferência. O número de indicações era limitado em sete e não poderia mencionar nada sobre os livros: apenas a imagem. Triste desafio para quem adora conversar sobre os livros, falar sobre as características das personagens e até mesmo dar e receber spoilers — mas somente em situações previamente autorizadas! Como poderia ficar sem falar das leituras que tanto gosto? Como conter toda a empolgação ao narrar minimamente a sinopse de um livro ou explicar que é impossível não torcer pela personagem de tal história? Como não compartilhar o brilho nos olhos ao lembrar de um clássico que me tocou a alma? De fato, seria um desafio. Mas os muros para um leitor nunca são tão altos e, seguindo os passos de Max, um judeu que ficou escondido no porão de uma Menina que roubava livros, vou dar um jeito de escrever o que me transborda o peito. Só não vou desenhar, porque essa habilidade eu não tenho!
A tarefa inicial: separar os livros! Tarefa fácil, se fosse uma lista de 100 livros em vez de 7. Quero todos, pode? A cada livro que eu pegava era um momento, um cheiro, uma pessoa, uma linha de ônibus, um contexto de vida, um dia frio, um bom lugar, um Djavan...Viajei. Mas, vamos aos livros.

O primeiro livro que habita todas as minhas listas é A Insustentável leveza do Ser, de Milan Kundera. Que delícia de nome, que delícia de história! Amo esse livro e não consigo explicar porquê o amo. Dramático, inquietante, estranho e filosófico. Esse livro me mostrou o quanto somos socialmente pequenos, mas imensos enquanto seres humanos. O quanto somos complexos e vastos. Foi indicação de uma amiga, empréstimo, logo em seguida comprei o meu. Não queria apenas possuir a história, queria abraçar o livro. Eu não conseguia dormir sem ler uma página que fosse. Esse livro me conduziu a profundas reflexões.

Segundo livro, A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Essa mulher dispensa apresentações e o livro é maravilhoso. Apesar das diferenças de época, continua atual. São três contos que narram os medos, a desesperança e a condição da mulher na sociedade. Quando li esse livro estava despedaçada. As mulheres dos contos também estavam, e de certa forma isso ajudou a me reconstruir. Eu me vi naqueles contos e arrisco a dizer que aquelas mulheres se viram em mim. É a magia da leitura.

Terceiro livro, Frankenstein, de Mary Shelley. Outra mulher que dispensa apresentações. Mary Shelley foi uma mulher à frente de seu tempo. A primeira edição de Frankenstein foi lançada em janeiro de 1818: são 200 anos e ainda nos fascina. Apaixonada pela criatura, sofri ao seu lado na maior parte do tempo. Apesar de ser considerado um monstro, ele é sensível e lida com as mais fundamentais questões humanas. Foi interessante acompanhar essa criatura que desperta para sua triste condição ao ser abandonada pelo seu criador,  e poder entender suas revoltadas, seus anseios, seus medos.

Quarto livro, As cem melhores crônicas brasileiras, vários autores. Esse aqui eu considero um golpe que estou dando, pois será cem em um! Temos Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Oswaldo de Andrade, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Mario de Andrade, Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes e outros pesos-pesados da nossa literatura. As crônicas são apresentadas por anos, começando em 1850. Dessa forma, o leitor pode perceber as mudanças nas formas de narrativas, como também as mudanças dos contextos sociais. Ganhei de presente de um tio, também filósofo. Ler esse livro foi o mesmo que consumir pedaços de felicidades, ainda é uma doce recordação. Crônica sempre foi um dos meu estilos prediletos. Esse livro me acompanhou por muitos anos, ali na bolsa, guardadinho. Gostava de abri-lo e lê-lo ao acaso. A transição da escrita sempre me trouxe um certo conforto de que, apesar dos pesares, tudo passa.

Quinto livro, O Estrangeiro, de Albert Camus. Sempre que lembro desse livro paro por alguns segundos e sinto um estranhamento. O relato é em primeira pessoa, sobre a vida de M. Mersault: um homem que vive sua vida de forma livre, mas sem a consciência dessa liberdade. A personagem não se afeta com os acontecimentos em sua vida e não vive uma vida de acordo com as normas sociais, mas como deseja viver. Camus aborda a questão do significado que a sociedade tenta atribuir à existência. Quem nunca se perguntou: qual o sentido da vida? Será que tem? Li esse livro no período da faculdade. Devorei, me senti estranha. Voltei a ler alguns anos depois, senti novamente o estranhamento. Ouvi dizer que na terceira vez é melhor.

Sexto livro, A trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, de Suzanne Collins. Outro golpe à vista, três em um! Do grupo das literaturas populares. Caiu nas graças dos adolescentes, virou filme e fez um enorme sucesso. A história se passa em um futuro distópico onde os Estados Unidos da América, após total destruição, se transforma em 12 distritos e 1 capital. Para manter um determinado controle e ausência de rebeliões, a capital cria os Jogos Vorazes. Anualmente, duas pessoas de cada distrito são sorteadas para participar desse reality show mortal. Todos são levados até uma arena montada tematicamente e lutam até a morte. Esses jogos se assemelham aos combates entre os gladiadores romanos. Por que eu gosto disso? Com toda a certeza a autora bebeu de fontes preciosas como 1984, de George Orwell. Toda a narrativa levanta questões políticas de manipulação midiática, totalitarismo, opressão, discurso de ódio, consumismo, desigualdade social e fascismo. Além disso tudo, temos todo o drama da personagem que nos prende. Li os três livros seguidos. Ainda lembro da sensação de entrar nesse universo distópico e caótico do choro da personagem, dos barulhos das bombas, da raiva e de algumas alegrias, bem poucas alegrias.

Sétimo livro, Sociedade sem lei, pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie, de Rubens R. R. Casara. Com pesar, chego ao sétimo e último livro. Foi uma escolha difícil. Existem ótimos concorrentes para essa posição, mas julguei necessário escolher esse livro por conta do momento em que estamos vivendo. Também precisamos olhar e estudar sobre o nosso contexto atual. Casara é juiz de direito no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, e em seu livro trata dos danos causados à sociedade pelo capitalismo e sistema neoliberal onde o homem não é mais a medida de todas as coisas e sim o dinheiro — o homem não é coisa alguma. Fala-nos de uma sociedade construída pela racionalidade neoliberal, que resulta em uma nova economia psíquica gerando, assim, pessoas sem limites e consequentemente uma sociedade sem limites. Leitura muito pertinente. Ainda não finalizei o livro, pois para compreender ou ampliar o conhecimento vou lendo em paralelo outros livros. Desse em específico fui para Psicologia das multidões, de Gustave Le Bon, e voltei a ler Educação após Auschwitz, de Adorno. E assim, sem perceber, dou mais um golpe e indico outros dois.

O mundo da leitura é isso: transitar por vários mundos, aprender e reaprender. A leitura é também a amplitude do sensorial: é sentir uma época, um desejo, um sentimento, um aroma. É ouvir uma melodia que não está presente nos seus ouvidos. Aprender novas línguas, novos povos. É o encontro de novos olhares. É na leitura que muitos podem viver em nós. Ler é a principal ferramenta para a nossa educação. Através da leitura amplio meu conhecimento, meu repertório. Passo a olhar o mundo como um sujeito crítico, posso transformá-lo.

Talvez seja assim só para mim e para você seja de outra forma. Qual a sua forma?

Pois bem. Essa lista não tem muita coerência: está tudo misturado! Tem um pouco de tudo que gosto, mas sei que desconheço um mundo de coisas que poderia vir a gostar. Uma vida não é suficiente para ler tudo que há para ser lido, mas uma certeza eu tenho: que sempre vou amar livros e sempre vou amar ler. Livro é tão bom que deveria ser declaração, tipo: eu te LIVRO!

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub

sábado, 1 de agosto de 2020

Eterno retorno*

— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. Manter-me distante do trabalho e das coisas que me afligem. “Ora, ora. Marx diria que o trabalho dignifica o homem. É por meio do trabalho que o homem transforma a natureza ao seu redor, forjando a si próprio”. Foda-se Marx. Prefiro a etimologia que qualifica o trabalho como um instrumento de tortura. Aliás, não é esse o mesmo Marx que afirma ser o trabalho o meio pelo qual o trabalhador vende sua força produtiva tornando-se uma mera engrenagem da máquina que produz lucro às custas de vidas humanas? É cedo demais para pensar nessas coisas, mas não consigo me desvencilhar.
— Está pronto, amor. Venha antes que esfrie!
— Tô indo!
Uma xícara de café frio é pior do que trabalhar. Café fresco, bem quente e doce é outra boa sensação da vida, daquelas que queremos preservar infinitamente. Porém, o café esfria, e a quantia que permanece na cafeteira italiana já não tem o mesmo sabor e temperatura da primeira dose. Contra minha vontade — vontade impotente — me encontro de novo com a fria e amarga realidade expressa naquele dito popular: “Tudo o que é bom dura pouco”. Talvez não seja sempre assim. Talvez exista um “quase” dentro desse “tudo”.
— Que dia é hoje, meu bem?
— Terça-feira. 12 de maio.
O tempo.
Os diversos modos de vê-lo passar me trazem à recordação — de maneira muito vaga — o que Nietzsche dissera acerca do eterno retorno. Já não sei se era esse o sentido que o filósofo quis imprimir à expressão, mas com certeza ela define meu esforço constante em afastar o que me aflige e…
— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. 

*Texto publicado originalmente na seção Puxadinho do terceiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições.