terça-feira, 6 de novembro de 2018

Por trás do som #1 - Metrô Linha 743

Metrô linha 743 – Raul Seixas – 1984




Antes de falarmos sobre tudo o que o “Raulzito” conseguiu criticar em uma música que à primeira vista soa inocente ou apenas mais uma daquelas loucuras habituais da década de 1980, vamos falar um pouco sobre quem era Raul e o que estava rolando no Brasil no momento em que esta canção veio a público em seu décimo segundo álbum cujo título é homônimo à música. 
Raul Seixas foi um dos grandes ícones do Rock n’ Roll brasileiro. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1945, Raulzito, como era chamado, cresceu em uma família de boas condições financeiras, tendo acesso a uma boa educação e também aos muitos livros da biblioteca particular de seu pai, onde passou a maior parte da sua infância, segundo ele mesmo. 
Sua infância e juventude voltada aos livros o tornaram um homem com interesse em muitas áreas de conhecimentos como a filosofia, a física, a metafísica, a teologia, a astronomia e muito mais. 
No ano de 1984 o Brasil já havia vivido quase todos os anos de ditadura civil-militar que pôde. Esta, que viria a findar em 1985, teve como suas maiores características a caça e censura aos artistas, intelectuais e, sobretudo, militantes ligados a organizações de esquerda. O Estado Militar, por meio de Atos Institucionais, censurou praticamente toda forma de levar notícias reais ao povo. Todo veículo de mídia era submetido a uma avaliação crítica feita por um militar encarregado. 
Foi no meio disso tudo que surgiu uma música difícil demais para ser censurada, divertida demais para não ser ouvida nas rádios e crítica demais para ser esquecida: “Metrô Linha 743”. 
Vamos à letra:
Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiadoCheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Este primeiro trecho é talvez o mais importante em termos de críticas ao que acontecia no país. O eu lírico da canção é um homem adulto que parece estar um tanto alheio às coisas que estavam acontecendo naquele período e, ao encontrar alguém que estava mais bem informado, começa a ouvir do seu interlocutor, por entrelinhas, os perigos que ambos corriam pelo simples fato de estarem pensando ou conversando um perto do outro.
Ele disse: eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Aqui temos uma das grandes pistas do que está acontecendo no cenário da canção. O homem que estava fumando seu cigarro sente medo de que outra pessoa pare e fume perto dele pois, nos tempos da ditadura, além da constante sensação de estar sendo vigiado pelas polícias políticas, qualquer tipo de reunião poderia soar como um murmurinho a fim de dar inicio a um movimento revolucionário.
Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Nesta parte temos mais uma grande crítica: um Estado repressor e autocrático não confia em intelectuais e jornalistas comprometidos com a verdade. Quando o interlocutor diz que o prato mais caro é “o que se come cabeça de gente que pensa” ele está pura e simplesmente falando que para o governo, intelectuais e universitários eram os mais procurados por conta de sua capacidade de não cair nas propagandas que visavam dar uma falsa sensação de que tudo estaria muito bem no país. Assim como o trecho “Perdi minha pena nem sei qual foi o mês” refere-se ao fato de que todos que exerciam o ofício da escrita, em algum momento, sem aviso ou sem motivo claro eram vedados de publicar em jornais e revistas, desta forma, tendo que procurar outros empregos para sobreviver. “Perder a pena” é uma maneira figurada de dizer que perdeu o direito de escrever já que a pena de nanquim é um dos símbolos da escrita.
O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumandoTrês outros chegaram com pistolas na mãoUm gritou: mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneosEu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aquiOutro disse: não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensandoEu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usandoE aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chãoEu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743
A partir desta estrofe, a canção começa a tomar um caminho mais ilustrativo, onde três homens armados (provavelmente militares pois, ao ser abordado, o sujeito pergunta se é pra entregar seus documentos) abordam o sujeito e, diferentemente do esperado, não querem ver seus documentos ou saber se ele era ou não uma ameaça ao Estado: estes homens querem saber sobre o quê o personagem estava pensando para poder fazer uma análise do valor que se poderia cobrar por sua cabeça, pois como dito “Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando”. Logo após, o sujeito já pode ver seu corpo sem sua cabeça. Ele perde sua cabeça (por cabeça, podemos tomar outros significados como senso crítico, capacidade de duvidar, intelecto) sem sequer perceber o momento em que isso ocorre, sem ser investigado, sem ter cometido crime algum. Aí encontramos a grandiosa crítica sobre a arbitrariedade das prisões no período militar.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tieteFui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôsSenti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou griladoQuem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibaisMas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu DeusCuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocêsEu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743
E, por fim, a estrofe mais pesada apesar de mais metafórica. No início da estrofe o personagem narra sua “cabeça oca” sendo jogada no lixo da cozinha e passando a viver como um cérebro vivo a vinagrete. Ora, para bom entendedor meia palavra basta. Este trecho fala especificamente sobre os cenários de tortura onde o sujeito da música, mesmo quase sem saber o que se passava no país, é confundido com líderes de esquerda e por isso é conduzido por algum militar de escalão médio (na pessoa do Maître) à sala onde seria interrogado. Ao chegar lá ele se vê ao lado de mais dois outros sujeitos, porém estes dois pareciam ser “pratos raros”, ou seja, pessoas muito procuradas pelas forças militares. Seguindo ele diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado” o que denota toda a dor de estar sendo fortemente torturado sem ao menos saber exatamente porque aquilo estava acontecendo. 
Fechando o trecho, o personagem da música deixa um recado póstumo: “cuidado brother, cuidado sábio senhor...” e “eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês”. Aqui temos o recado de que já não havia mais certo ou errado, culpado ou inocente: qualquer cidadão, mesmo o mais desinformado, estava à mercê dos caçadores canibais que, com gosto, devoravam cabeças sem medir a gravidade de seus atos.
Chegamos até aqui e você deve estar se perguntando: “Ora, mas o que isso tem a ver com esse tal Metrô Linha 743?”. Muito simples! Perceba que o nome do Metrô surge de repente e fora de contexto ao final de cada estrofe; e que cada estrofe é uma espécie de denúncia a algum tipo de atrocidade causada pelo governo da época. Esta é a cereja do bolo desta grande lera. O Metrô que surge ao final de cada relato é uma alusão ao que estava acontecendo com os jornais e rádios da época. Com a censura imposta e o controle do governo sobre os veículos de mídia, nada do que acontecia podia ser noticiado, sequer comentado pelas ruas. Para, então, que os jornais tivessem o que falar e para que os brasileiros de regiões mais afastadas vivessem com sensação de que as coisas estavam todas funcionando muito bem, as notícias a que os cidadãos tinham acesso eram sempre relacionadas a alguma obra de Metrô, Trem ou Estrada que estavam sendo construídos ou reformadas para maquiar o desgoverno que se fazia.
Esta canção é uma obra prima do livre pensamento e da resistência contra toda forma de censura e de opressão. É um alerta para que nós, hoje, entendamos que se deixarmos que isso tudo aconteça mais uma vez, seja por apoiar ou por não entender exatamente o que está em curso, em algum momento qualquer um pode se tornar uma vítima pelo simples fato de estar pensando.