terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Sobre a saudade

Saudade é uma das palavras mais utilizadas na poesia, principalmente nas poesias de amor. Deve ser, também, a mais usada na música popular (sertanejo talvez?). A saudade descreve sentimentos de falta, perda, distância, amor, amores... A palavra saudade é uma derivação de solitatem, do bom e velho Latim, que quer dizer solidão. Não sei vocês, mas eu nunca senti uma saudade compartilhada, foi sempre só minha e na solidão da minha alma. Cada um com a sua, não é não?! Considerada exclusividade da Língua Portuguesa: quimera! É patrimônio da humanidade. Graças a ela temos ótimas produções literárias. Acho a saudade muito bonita na poesia, mas na vida real ela queima.
Costumo dizer que saudade é uma coisa sem retorno, sem rótulo de bom ou ruim. Apenas sem retorno. Saudade é o crédito já utilizado, o bônus aproveitado, o benefício gasto. É o vivido transformado em passado. Já ouvi sobre a saudade do que não se viveu. Ainda assim, é o não vivido, a oportunidade não agarrada, mas passada.
A saudade é um deslocamento temporal: te leva para o passado ou faz o passado passar por você, e normalmente isso acontece naquele dia comum em que você está na fila do supermercado ou esperando o farol lhe conceder a passagem. Simplesmente acomodada na minha vidinha e, de um minuto para outro, a saudade vem e me esmaga com qualquer coisa que vejo, ouço ou cheiro e se coloca à minha frente. Fico em suas mãos. É uma das melhores formas de perceber o tempo, perceber tudo que não volta, que não se toca. Saudade é o bafo quente da vida, são os nossos pedaços espalhados pelo tempo.
A saudade não solicita permissão: ela atravessa e pronto. Tem uma música do Jorge Vercillo que diz assim:

Saudade tem limite, eu pensei
E quando creio que ela acabou
me leva mais além 

E ela leva... Te leva para dentro do carro em uma deliciosa conversa de pai e filha regada a Belchior, ou te desloca para o quarto onde éramos três adolescentes cheios de sonhos gastando Renato Russo. Te joga em uma caminhada pela orla da praia onde a brisa e o cheiro do mar é revigorante, ou te faz pousar na cozinha da Nona salivando à espera da comida. A saudade te coloca de frente com a ausência, remonta cenários, sons, movimentos... Ela te sacode. Nos faz rever aqueles que perdemos para a morte e aqueles que perdemos para a vida. A saudade é física, subjetiva e malcriada. Entra pelos pulmões e estaciona entre o estômago e o coração: falta ar, é quase choro, é quase riso, às vezes é quase dança. Só vai embora quando quer, somos por ela governados. Saudade é tirana, não declina frente às nossas súplicas.
Saudade é o desejo do corpo e da alma de reviver o momento e é a revolta de não ser capaz. Quando ela chega sinto vontade de correr, de agarrar, mas no minuto seguinte sinto minhas pernas adormecerem frente a impotência, sinto o desejo escorrer pela alma implorando mais uma vez. O tempo vem, me toca e me (re)coloca no lugar do efêmero, do não-mais, pois nem toda saudade se mata. Somos feitos de carne, osso e saudade.


sábado, 8 de dezembro de 2018

Sinestesia

Sócrates (470 – 399 a. C.), nosso querido filósofo grego, que discorria sobre vários assuntos sempre com uma perspectiva humanista, entrou uma vez no ateliê do pintor Parrásio e o questionou sobre a representação da pintura. Com essa atitude, ao se interessar pela essência da pintura, transportou o questionamento filosófico para o campo das artes. Seu discípulo Platão (427 – 347 a. C.) no diálogo A república estabeleceu um confronto entre arte e realidade: levando em conta o caráter representativo da pintura e da escultura — cópias das cópias imperfeitas de uma realidade essencial e imutável[1] — colocou a arte abaixo da verdadeira Beleza, rotulando-as como supérfluas. Por outro lado, observava que a poesia e a música exercem influência muito grande sobre nossos estados de ânimo. Com isso, Platão conseguiu transformar em problema filosófico a existência e a finalidade das artes, comparando sua essência à própria realidade, problematizando a relação entre elas e a Beleza e os efeitos morais e psicológicos da música e da poesia. A simples fruição da pintura, da escultura e da poesia também passa a constituir objeto de investigação filosófica: é o pensamento racional que interpela sobre seu valor, sua razão de ser e o seu lugar na existência humana. Desde então, vários filósofos se ocuparam do pensar, entender e falar sobre as artes, dando origem — e isto é só um palpite — a uma área da Filosofia que só viria a ser batizada muitos anos depois: a Estética! Este termo, que designa a ciência da arte e do belo, veio a público por volta de 1750 (séc. XVIII) por meio da obra Aesthetica, do filósofo alemão Alexander Baumgarten[2]. Hoje podemos arriscar uma definição e dizer que a arte é um produto da atividade humana que, obedecendo alguns princípios, tem por finalidade produzir artificialmente os múltiplos aspectos de uma só beleza universal. 
Mas... Será mesmo? O que é o Belo? O que é o Belo para você? O que é a Arte?
Encontraremos ao longo da história inúmeros conceitos quanto ao tema aqui exposto, mas não queremos nos deter a isso. O primeiro parágrafo é apenas um grão nesse vasto oceano que, em nossa humilde opinião, merece um estudo mais aprofundado.
Lembro-me de uma intervenção artística realizada pelo artista Eduardo Srur[3], que consistia em espalhar garrafas pets gigantes pelas margens do rio Tietê. No momento em que vi tudo aquilo achei de um extremo mau gosto. Para meu espanto, aquela imagem não saiu da minha mente. Aos poucos, percebi a grandiosidade da mensagem que o artista queria passar, mensagem que teve significado e efeitos apenas sobre minha mente. Eis aqui a fruição causada pela arte. Esse tipo de intervenção sempre é um risco para o artista, mas qual artista não gosta de correr riscos? Ao andar pela cidade esbarramos a todo tempo com inúmeras obras de arte, e na maioria das vezes não percebemos sequer sua existência. Com isso, perdemos a oportunidade de questionar nossa relação com o mundo e com novas perspectivas. Considerando a necessidade de promover o pensamento crítico e o novo olhar para o mundo, nós do “O Saber Inútil” temos o prazer — diria um imenso prazer — de inaugurar a seção “Sinestesia”, que existirá para promover o contato com a Arte, oferecendo aos artistas do cotidiano um espaço para expô-las e a todos nós a oportunidade de apreciá-las e discutir sobre suas mensagens e propósitos.
Entre, puxe a cadeira e deixe a fruição tomar conta de você! Caso seja um artista e queira publicar aqui sua arte entre em contato conosco: será um prazer divulgar sua arte e promover mais reflexões dentro desta fascinante área da Filosofia!



[1] Na época de Platão acreditava-se que as estrelas e demais astros possuiam lugares fixos no céu, e que sua imutabilidade era sinal de perfeição. Deste modo, a mobilidade e constante transformação das coisas aqui na Terra representavam a imperfeição. A partir disso, Platão desenvolveu a chamada "Teoria das Ideias", segundo a qual haveria, em uma realidade suprasensível, modelos perfeitos e imutáveis de tudo o que há na Terra. Se você e eu e tudo o que nos rodeia são apenas cópias de uma perfeição etérea, a arte (pintura, escultura) nada mais seria do que uma cópia das cópias imperfeitas dessa perfeição. 
[2] Cf. definição do termo “Estética” em ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 426.
[3] Para conhecer um pouco mais do artista e de suas obras, confira: http://www.eduardosrur.com.br/.