terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Sobre a saudade

Saudade é uma das palavras mais utilizadas na poesia, principalmente nas poesias de amor. Deve ser, também, a mais usada na música popular (sertanejo talvez?). A saudade descreve sentimentos de falta, perda, distância, amor, amores... A palavra saudade é uma derivação de solitatem, do bom e velho Latim, que quer dizer solidão. Não sei vocês, mas eu nunca senti uma saudade compartilhada, foi sempre só minha e na solidão da minha alma. Cada um com a sua, não é não?! Considerada exclusividade da Língua Portuguesa: quimera! É patrimônio da humanidade. Graças a ela temos ótimas produções literárias. Acho a saudade muito bonita na poesia, mas na vida real ela queima.
Costumo dizer que saudade é uma coisa sem retorno, sem rótulo de bom ou ruim. Apenas sem retorno. Saudade é o crédito já utilizado, o bônus aproveitado, o benefício gasto. É o vivido transformado em passado. Já ouvi sobre a saudade do que não se viveu. Ainda assim, é o não vivido, a oportunidade não agarrada, mas passada.
A saudade é um deslocamento temporal: te leva para o passado ou faz o passado passar por você, e normalmente isso acontece naquele dia comum em que você está na fila do supermercado ou esperando o farol lhe conceder a passagem. Simplesmente acomodada na minha vidinha e, de um minuto para outro, a saudade vem e me esmaga com qualquer coisa que vejo, ouço ou cheiro e se coloca à minha frente. Fico em suas mãos. É uma das melhores formas de perceber o tempo, perceber tudo que não volta, que não se toca. Saudade é o bafo quente da vida, são os nossos pedaços espalhados pelo tempo.
A saudade não solicita permissão: ela atravessa e pronto. Tem uma música do Jorge Vercillo que diz assim:

Saudade tem limite, eu pensei
E quando creio que ela acabou
me leva mais além 

E ela leva... Te leva para dentro do carro em uma deliciosa conversa de pai e filha regada a Belchior, ou te desloca para o quarto onde éramos três adolescentes cheios de sonhos gastando Renato Russo. Te joga em uma caminhada pela orla da praia onde a brisa e o cheiro do mar é revigorante, ou te faz pousar na cozinha da Nona salivando à espera da comida. A saudade te coloca de frente com a ausência, remonta cenários, sons, movimentos... Ela te sacode. Nos faz rever aqueles que perdemos para a morte e aqueles que perdemos para a vida. A saudade é física, subjetiva e malcriada. Entra pelos pulmões e estaciona entre o estômago e o coração: falta ar, é quase choro, é quase riso, às vezes é quase dança. Só vai embora quando quer, somos por ela governados. Saudade é tirana, não declina frente às nossas súplicas.
Saudade é o desejo do corpo e da alma de reviver o momento e é a revolta de não ser capaz. Quando ela chega sinto vontade de correr, de agarrar, mas no minuto seguinte sinto minhas pernas adormecerem frente a impotência, sinto o desejo escorrer pela alma implorando mais uma vez. O tempo vem, me toca e me (re)coloca no lugar do efêmero, do não-mais, pois nem toda saudade se mata. Somos feitos de carne, osso e saudade.


sábado, 8 de dezembro de 2018

Sinestesia

Sócrates (470 – 399 a. C.), nosso querido filósofo grego, que discorria sobre vários assuntos sempre com uma perspectiva humanista, entrou uma vez no ateliê do pintor Parrásio e o questionou sobre a representação da pintura. Com essa atitude, ao se interessar pela essência da pintura, transportou o questionamento filosófico para o campo das artes. Seu discípulo Platão (427 – 347 a. C.) no diálogo A república estabeleceu um confronto entre arte e realidade: levando em conta o caráter representativo da pintura e da escultura — cópias das cópias imperfeitas de uma realidade essencial e imutável[1] — colocou a arte abaixo da verdadeira Beleza, rotulando-as como supérfluas. Por outro lado, observava que a poesia e a música exercem influência muito grande sobre nossos estados de ânimo. Com isso, Platão conseguiu transformar em problema filosófico a existência e a finalidade das artes, comparando sua essência à própria realidade, problematizando a relação entre elas e a Beleza e os efeitos morais e psicológicos da música e da poesia. A simples fruição da pintura, da escultura e da poesia também passa a constituir objeto de investigação filosófica: é o pensamento racional que interpela sobre seu valor, sua razão de ser e o seu lugar na existência humana. Desde então, vários filósofos se ocuparam do pensar, entender e falar sobre as artes, dando origem — e isto é só um palpite — a uma área da Filosofia que só viria a ser batizada muitos anos depois: a Estética! Este termo, que designa a ciência da arte e do belo, veio a público por volta de 1750 (séc. XVIII) por meio da obra Aesthetica, do filósofo alemão Alexander Baumgarten[2]. Hoje podemos arriscar uma definição e dizer que a arte é um produto da atividade humana que, obedecendo alguns princípios, tem por finalidade produzir artificialmente os múltiplos aspectos de uma só beleza universal. 
Mas... Será mesmo? O que é o Belo? O que é o Belo para você? O que é a Arte?
Encontraremos ao longo da história inúmeros conceitos quanto ao tema aqui exposto, mas não queremos nos deter a isso. O primeiro parágrafo é apenas um grão nesse vasto oceano que, em nossa humilde opinião, merece um estudo mais aprofundado.
Lembro-me de uma intervenção artística realizada pelo artista Eduardo Srur[3], que consistia em espalhar garrafas pets gigantes pelas margens do rio Tietê. No momento em que vi tudo aquilo achei de um extremo mau gosto. Para meu espanto, aquela imagem não saiu da minha mente. Aos poucos, percebi a grandiosidade da mensagem que o artista queria passar, mensagem que teve significado e efeitos apenas sobre minha mente. Eis aqui a fruição causada pela arte. Esse tipo de intervenção sempre é um risco para o artista, mas qual artista não gosta de correr riscos? Ao andar pela cidade esbarramos a todo tempo com inúmeras obras de arte, e na maioria das vezes não percebemos sequer sua existência. Com isso, perdemos a oportunidade de questionar nossa relação com o mundo e com novas perspectivas. Considerando a necessidade de promover o pensamento crítico e o novo olhar para o mundo, nós do “O Saber Inútil” temos o prazer — diria um imenso prazer — de inaugurar a seção “Sinestesia”, que existirá para promover o contato com a Arte, oferecendo aos artistas do cotidiano um espaço para expô-las e a todos nós a oportunidade de apreciá-las e discutir sobre suas mensagens e propósitos.
Entre, puxe a cadeira e deixe a fruição tomar conta de você! Caso seja um artista e queira publicar aqui sua arte entre em contato conosco: será um prazer divulgar sua arte e promover mais reflexões dentro desta fascinante área da Filosofia!



[1] Na época de Platão acreditava-se que as estrelas e demais astros possuiam lugares fixos no céu, e que sua imutabilidade era sinal de perfeição. Deste modo, a mobilidade e constante transformação das coisas aqui na Terra representavam a imperfeição. A partir disso, Platão desenvolveu a chamada "Teoria das Ideias", segundo a qual haveria, em uma realidade suprasensível, modelos perfeitos e imutáveis de tudo o que há na Terra. Se você e eu e tudo o que nos rodeia são apenas cópias de uma perfeição etérea, a arte (pintura, escultura) nada mais seria do que uma cópia das cópias imperfeitas dessa perfeição. 
[2] Cf. definição do termo “Estética” em ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 426.
[3] Para conhecer um pouco mais do artista e de suas obras, confira: http://www.eduardosrur.com.br/.  





sábado, 17 de novembro de 2018

Consciência negra: não é apenas um dia, mas um chamado à reflexão, os professores podem contribuir

Prof. Dr. Márcio Jean Fialho de Sousa
Universidade de Montes Claros - UNIMONTES
E-mail: pcopmarciojean@gmail.com

O Dia da Consciência Negra é uma data bastante importante para refletir especificamente sobre a importância dos negros para a constituição da cultura nacional e, acrescento ainda, é um momento para homenagear todos àqueles que sacrificaram e renderam suas vidas por esta terra chamada Brasil.
Diante disso, vale pensar sobre os preconceitos e racismos que, ainda hoje, a comunidade negra tem sofrido no seu cotidiano. Muitas vezes esse sofrimento nem chega a ser resultado de agressões físicas, o que não deixa de acontecer também, mas vêm de onde não se espera, e de pessoas que, muitas vezes, também nem se dão conta de que seu discurso pode estar à serviço da propagação de preconceitos e racismos resultantes de uma história que teve início há muitos séculos antes.
Na escola, por exemplo, o papel do professor é de extrema importância para que o respeito às diferenças possa ser propagado. Esse cuidado pedagógico, porém, deve estar sempre preocupado com parâmetros que valorizem o ser humano por ser humano e não por pertencer a esta ou aquela etnia, raça, gênero, nação ou língua. Desse modo, o discurso educacional empregado nas salas de aula, pelos professores, é responsável por grande parte da formação das crianças em sua fase de formação cognitiva. Isso ocorre porque o professor, na escola, é o modelo de adulto que a criança tem referência, e nele se espelhará muitas vezes. Por isso, a responsabilidade do professor de educação infantil e das séries iniciais, por exemplo, é decisiva para toda a carreira acadêmica da criança e para a formação da sua cidadania — claro que os pais têm maior responsabilidade nesse processo, porém não é possível ignorar a ação dos professores nesse ínterim. 
Desse modo, urge que se faça um debate acerca dos discursos educacionais como formadores de conceitos. Para isso, lançarei mão de dois textos literários, a saber “A menina Vitória”, de 1965, escrito pelo angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de Silvana Martins, escritora afro-brasileira, para ilustrar como a educação pode ser propagadora de valores que elevem o ser humano à sua verdadeira dignidade e como, ao mesmo tempo, pode ser propagadora de valores que excluem o negro da sociedade, vendo-o como inferior. 
Os estudos africanos e afro-brasileiros têm ganhado espaço nos diversos meios educacionais de modo progressivo. Esse fato deve-se, em grande parte, às leis 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008, que regulamentam e obrigam o ensino básico da educação nacional a incluir no currículo oficial da rede a temática da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. 
A lei de 2003, em seu inciso 2º, dispõe que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, “em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” — o mesmo é dito no inciso 2 da lei 11.645. Deste modo, sendo a Literatura a expressão de um povo, ao mesmo tempo em que nasce de determinado povo, dando voz aos aspectos de sua identidade, de seus valores e crenças, é lícito que os professores deem voz ao povo que foi silenciado por séculos a fio, mas que ao mesmo tempo, de modo diferente ao realizado pelos europeus que aqui chegaram e se instalaram, foram também responsáveis pela formação da nação brasileira, passando desde a formação do português brasileiro, até às tradições, culinária e o jeito brasileiro de ser.
Ocorre que essas leis são apenas os primeiros passos para uma mudança profunda nas estruturas educacionais, e essa transformação não ocorrerá de uma hora para outra, será necessário ainda percorrer um grande caminho para a mudança de toda uma estrutura cultural que há séculos vinha sendo propagada, vivenciada e perpetuada na e pela história. 
Segundo Ruth Amossy, a construção de um discurso e sua aceitação se desenvolvem por meio de estereotipagem, ou seja, o destinatário do discurso avalia a mensagem veiculada a partir de um modelo pré-construído dentro de categorias por ele difundida e no interior da qual ele a classifica. Em outras palavras, o público não avalia apenas o discurso, mas o lugar do qual ele é produzido (AMOSSY, 2005, p. 125-126). Sendo assim, se o produtor do discurso é um professor, socialmente, seu posicionamento estereotípico é de autoridade, por isso tem grande peso e importância o que ele diz. Daí a autoridade, a validação e o compromisso do discurso do profissional da educação. 
Nesse sentido, estão de acordo Kabengele Munanga e Maria Antonieta Alba Celani ao afirmarem que a constituição da identidade de um indivíduo e de um povo se dá por meio da linguagem. Para Munanga, a linguagem é também uma das manifestações mais próprias de uma cultura, pois longe de ser apenas um veículo de comunicação objetiva, é testemunho das experiências adquiridas por um povo, compõe sua memória coletiva e seus valores (MUNANGA, 2005-2006, p. 48). Celani, por sua vez, endossa essa perspectiva na medida em que afirma ser a linguagem uma ferramenta psicológica, necessária para o estabelecimento das práticas sociais, e é nessas práticas que o indivíduo se constitui como ser humano (CELANI, 2005, p. 43). É nessa perspectiva que será analisado o discurso educacional presente nas narrativas selecionadas para este estudo, elencadas no início desta comunicação.
Os contos “A menina Vitória”, de 1965, do angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de 2015, da escritora afro-brasileira Silvana Martins, apresentam narrativas ficcionais de formação que exemplificam situações que representam a realidade nas escolas quanto ao poder do discurso pedagógico, recorrentes em sala de aula, e que precisariam ser repensadas pelos profissionais da educação com o intuito de promover o respeito e a convivência com a diferença. 
No texto de Arnaldo Santos é apresentada a história de uma menina negra que ascende socialmente ao se tornar professora, ficando conhecida como a menina Vitória, professora da 3ª classe.
[Ela] era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas (SANTOS, 1985, p. 83).
Vale notar que este conto foi escrito no período em que Angola ainda era colônia portuguesa, visto que a independência do país se deu, oficialmente, no dia 11 de novembro de 1975 e o texto é de 1965. Fato importante a ser notado, pois isso implica dizer que saber que a menina Vitória é uma negra que teve acesso à educação formal e, além disso, ter estudado na Metrópole, unido ao esforço de se parecer branca, sempre renovando o pó-de-arroz, e a preferência pelos alunos com fenótipos europeus a coloca no lugar de uma assimilada. 
Essa categorização do termo assimilado foi designada pelo governo português, no ano de 1926, atualizada em 1929, e reforçada no Acto Colonial, promulgado em 1930. Segundo consta, e a critério do governo, o assimilado 
[...] tinha de ter 18 anos de idade, demonstrar que sabia ler, escrever e falar português fluentemente, ser trabalhador assalariado, comer, vestir e ter a mesma religião que os portugueses, manter um padrão de vida e de costumes semelhante ao estilo de vida europeu e não ter cadastro na polícia (ZAU, 2015). 
Os que não se encaixassem nessa descrição eram designados indígenas. Deste modo, ainda que negra, a menina Vitória sentia-se branca e agia como uma europeia, inclusive humilhando e rebaixando seu povo, como se tivesse esse direito e como se não pertencesse a ele. Ao receber o novo aluno Gigi, que tinha uma pronúncia ruim do português, mas que consegue acessar a escola por meio do muito esforço feito pelo pai que queria vê-lo secretário, a professora olha-o com desconfiança e o coloca no fundo da sala junto a outra criança negra, chamado Matoso e que se tornara adjetivo, na boca da professora, para determinar tudo o que fosse ruim e desprezível na sala de aula: “ ‘Pareces o Matoso a falar...’, ‘Sujas a bata como o Matoso...’, ‘Cheiras a Matoso...’ – e ele [o Matoso] guardava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos” (SANTOS, 1985, p. 83) da professora, tudo isso porque, além dela tê-lo recebido mal, desde a primeira aula, “não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso” (SANTOS, 1985, p. 83). O relacionamento da professora piorou ainda mais quando, certa vez, Matoso a respondeu em quimbundo dizendo “O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” (SANTOS, 1985, p. 83). 
Desse modo, a afronta à professora assimilada seria excessiva, afinal, além de não se reconhecer entre os seus, ela ainda teria sido insultada em uma língua destinada aos indígenas, classe subalterna, colonizada e pobre. Porém, deixando de assumir seu papel de educadora, afinal estava apenas para promover a manutenção do status quo, o que fazia ela era ir jogando pela sala o nome do aluno com crueza, “criando um símbolo maldito” a partir da figura da criança.
Mediante a indiferença da professora, Matoso acaba por exteriorizar sua real cultura, seus valores, ao utilizar o quimbundo dirigindo-se a ela. Desse modo, assim como dito por Munanga, a língua representou naquele ato o testemunho de suas experiências, de seu povo (MUNANGA, 2005-2006), logo, mais que o significado das palavras proferidas, o que mais afrontou a menina Vitória foi a língua utilizada, pois esta demarcou a identidade daquele povo, a qual ela também estava inserida e que, de certa forma, fazia parte de sua essência, mas que foi rejeitada por ela.
Por outro lado, sendo a professora a autoridade reconhecida socialmente naquele espaço, restaria ao aluno o recolhimento e a insatisfação por fazer parte daquele lugar. Outros alunos, vendo a situação, acabavam por se retraírem também, limitando sua participação nas aulas o quanto podiam. Gigi, por exemplo, retraiu-se: 
Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. [...] não respondia quando a menina Vitória o chamava à lição, receando o despropósito que o identificasse com o Matoso. [...] diminuía-se ainda mais para não ser notado, esforçando-se num mimetismo impotente por imitar gestos dos meninos da baixa, [e dizia] Tenho que ser como eles (SANTOS, 1985, p. 83). 
Em “A menina Vitória”, o aluno Gigi acaba se limitando cada vez mais no seu desenvolvimento cognitivo, resultado do medo provocado pelas risadas dos colegas diante das correções grosseiras feitas pela professora, sendo assim, “Esvaziava-se das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis” (SANTOS, 1985, p. 84), apenas em casa externava toda a sua insatisfação e insultava com muita fúria a professora. Matoso, com o passar do tempo, já não se debatia, nem chorava, “Apenas no rosto as suas feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a” (SANTOS, 1985, p. 84).
O texto de Arnaldo Santos é capaz de levar o leitor à realidade do contexto da escrita. Por meio de Gigi e de Matoso é possível perceber o sofrimento de um povo oprimido e explorado, tendo como seus maiores algozes não propriamente os colonos portugueses, mas os próprios colonizados trabalhando para a estabelecimento dos poderes aos quais também eles estavam subjugados, tendo, neste caso, o discurso da professora como chancela para a permanência da discriminação e rebaixamento da maioria.
No texto de Silvana Martins, por seu turno, publicado cinco décadas depois, a violência é aparentemente menor que a apresentada por Arnaldo Santos, porém simbolicamente perpetua, de modo camuflado e sutil, os mesmos valores racistas presentes em “A menina Vitória”.
Em “A menina e o lápis de cor”, Silvana Martins retrata o conflito vivido por uma criança negra que mediante a tarefa de desenhar sua família se dá conta de que o lápis “cor de pele” não condiz com a cor de seus familiares, o que traz à discussão o valor dos discursos presentes em termos e referências escolares aparentemente despretensiosas e sem valor ideológico. 
“A menina e o lápis de cor” narra uma situação vivida por uma criança ainda no período da alfabetização: “Ela ainda estava aprendendo as primeiras letras”, informa a primeira linha do conto. Nesse período a criança adorava ir à escola e aprender coisas novas. Era um momento de grandes descobertas que ela levaria para a vida toda. Certo dia, a professora propôs que cada um desenhasse sua própria família. A menina toda contente e satisfeita desenhou toda a família por ordem de altura: o pai, o irmão, a irmã, a mãe e ela. O grande dilema, porém, apareceu no momento em que ia começar a colorir. Foi então que ela perguntou:
— Professora, que cor eu uso para pintar minha família?A professora se aproximou com cuidado, parecia que as palavras ficaram dentro dela. Ela pensou muito e me disse: “Use o cor de pele para pintar sua mãe e você e o marrom ou preto para pintar os outros”.
— Mas professora, esse cor de pele é rosado, e o preto é muito escuro, eu nunca vi gente dessas cores. A senhora já viu?A professora balançou a cabeça e sorriu. Disse docemente:
— Eu nunca vi (MARTINS, 2015, p. 175).
De fato, esta cena é, ou já foi, bastante corriqueira nas escolas, porém, por traz da doçura da professora, ainda que ela não endossasse diretamente a ideia pressuposta, há naquela frase uma classificação racial e preconceituosa de que a cor da pele deve ser aquela cor clara, cuja proximidade estaria na cor rosada, tal como o estereótipo europeu e norte-americano. O problema gerado na discussão, no entanto, não foi resolvido. A criança teve que levar a questão para casa:
— Mamãe, tenho um problema...
— Qual, querida?
— Como faço para pintar minha família, se cada um aqui em casa tem uma cor?Minha mãe sorriu e disse:
— Teremos que comprar uma caixa de lápis com mais cores, que tenha vários tons de marrom.No caminho para casa eu lhe perguntei por que cada pessoa tem uma cor, e minha mãe me explicou, do jeito dela, que papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial. (MARTINS, 2015, p. 176).
Diferentemente da história de Gigi, a menina do lápis de cor teve como contar com a ajuda da mãe que prontamente e com simplicidade, e como a educadora primeira, ensinou à filha que as diferenças existem e sempre existirão, e que cada pessoa se torna especial por suas especificidades, tarefa com que a professora poderia ter contribuído. 
Chegando à escola a menina mostrou o cartaz à professora:
— Pronto, professora, agora como eu escrevo os nomes?Ela pegou meu cartaz e sorriu.
— Sua família é colorida assim?
— Sim, temos negros de todos os tons lá em casa.
— E você, de que cor você é?
— Eu sou negra, professora, como todos os outros lá de casa. (MARTINS, 2015, p. 176).
Como se pode notar, o discurso racista embutido no lápis de cor “de pele” não foi o suficiente para rebaixar e/ou promover maiores problemas para o desenvolvimento cognitivo da menina questionadora, pelo contrário, justamente por características próprias, a inquietação da aluna fez com que ela fosse a procura de respostas com outra pessoa imbuída de autoridade, neste caso, a mãe. 
Dessa forma, a linguagem foi efetiva e afirmativamente empregada para o estabelecimento das convivências sociais, de modo que a criança pode, nesse processo, reconhecer-se como indivíduo distinto, assim como todos os outros o são, mas de modo algum inferiorizada como ser humano, tal como já refletira Maria Antonieta Alba Celani ao discursar sobre o papel da linguagem na constituição do sujeito (CELANI, 2005, p. 43). Pelo contrário, “a identidade do indivíduo vai se constituindo pelo contato com o outro e por meio de uma troca contínua que permite a ele estruturar-se e definir-se pela comparação e pela diferença em um processo de reconhecimento”, acrescenta Alcione Carvalho (2012, p. 88).

Considerações finais

Tentando esboçar algumas considerações finais, vale lembrar que a história da cultura e da valorização do negro no Brasil aos poucos tem ganhado espaço significativo, particularmente, desde o ano de 1933, quando Gilberto Freyre publica a obra Casa-grande & senzala. Sem, no entanto, ter a pretensão de analisar essa obra neste curto espaço que cabe este estudo, essa obra de Gilberto Freyre, de certo modo, foi a responsável por mostrar uma vida real e verdadeiramente humana dos negros, e não distinta das dos outros brasileiros, aqueles que ainda os ignoravam. Claro que muitas questões já foram levantadas sobre a obra, mas não vêm ao caso, o que vale aqui é a ressignificação do negro que a obra propôs. 
Depois dessa divulgação promovida por Freyre, a década de 1970 é a que apresentou novos movimentos sobre as questões étnicas e raciais no Brasil: “Movimentos sociais e a permanência da comunidade negra em revelar o abismo social entre cidadãos brancos e negros existente no país” (CARVALHO. LIMA, 2012, p. 10), inspiradas no movimento pelos direitos civis dos Estados Unidos. Particularmente a partir dessa época, muitas ações positivas surgiram e tem surgido para a valorização da cultura e da história do negro como essencial para a formação da cultura brasileira. 
As mais recentes dessas ações formais deram-se com as leis 10.639 e a 11.645, que têm por fim último a promoção formal e obrigatória dos estudos culturais negros e afro-brasileiros nas escolas de todo o Brasil. De fato, não será, porém, uma ou duas leis que se responsabilizarão para que o que se propõe seja cumprido, mas sua aplicação efetiva, que só será possível se houver profissionais comprometidos e conscientes da importância e do reconhecimento do estudo e da valorização de todos os saberes que compõem a cultura brasileira, particularmente, daqueles que, literalmente, construíram este país com mãos de ferro e costas marcadas. 
Os professores neste processo não são os culpados pela disseminação de inverdades sobre os negros e negras escravizados e violentados, e, por muitas vezes, reproduzirem discursos (pré) conceituosos. Mas, fazendo jus ao seu ofício de ensinar e, muitas vezes, de educar, precisam atentar-se às artimanhas da língua, que por si é ideológica, para que não sejam também os responsáveis pela propagação do ódio, do racismo e da separação entre as pessoas dentro do próprio país e no mundo, pois como disse a mãe da menina do lápis de cor, em sua simplicidade: “papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial”. 


Referências

AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

CARVALHO, Francione Oliveira. LIMA, Dulcilei da Conceição. Relações étnico-raciais: a presença negra no Brasil. São Paulo: Editora Mundo Mirim, 2012.

CELANI, Maria Antonieta Alba. Questões de ética na pesquisa em Linguística Aplicada. In: Linguagem & Ensino. Vol. 8, n. 1. Pelotas, 2005.

MARTINS, Silvana. A menina e o lápis de cor. In: Cadernos Negros – Contos afro-brasileiros. Vol. 38. São Paulo: Quilombhoje, 2015.

MUNANGA, Kabengele. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. In: Revista USP. N. 68. SP: USP, 2005-2006.

SANTOS, Arnaldo. A menina Vitória. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: História e Antologia. São Paulo: Ática, 1985.

ZAU, Filipe. Definição de Assimilados. In: Jornal de Angola. 26 de abril de 2015. Disponível em: http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/definicao_dos_assimiladosAcesso em: 2 de agosto de 2018.


Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES, membro do grupo permanente do PPGL - Estudos Literários, atual Coordenador Institucional PIBID-Capes. Em 2017 concluiu o primeiro Pós-doutorado em Estudos da Linguagem pela PUC-SP e, em 2019, concluiu o segundo pós-doutoramento em Estudos Literários pela UNIMONTES. Doutor e Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo - USP. Possui Especialização em Teologia pela PUC-SP e em Língua Inglesa pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Atuou como professor universitário em diversas IES do Estado de São Paulo. Trabalhou com formação de professores na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo durante cinco anos. Também foi um dos responsáveis pela implantação do projeto Early Bird, ensino de Inglês nas séries iniciais, junto a mesma Secretaria de Educação. Recebeu o Título de Professor Paulista, na Câmara dos Vereadores de São Paulo, em 2017. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas de Língua Portuguesa, Ensino e Estudos da Linguagem, atuando, principalmente, com: Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Comparada, Teoria Literária; Eça de Queirós, Teolinda Gersão, Florbela Espanca (Currículo Lattes). 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Por trás do som #1 - Metrô Linha 743

Metrô linha 743 – Raul Seixas – 1984




Antes de falarmos sobre tudo o que o “Raulzito” conseguiu criticar em uma música que à primeira vista soa inocente ou apenas mais uma daquelas loucuras habituais da década de 1980, vamos falar um pouco sobre quem era Raul e o que estava rolando no Brasil no momento em que esta canção veio a público em seu décimo segundo álbum cujo título é homônimo à música. 
Raul Seixas foi um dos grandes ícones do Rock n’ Roll brasileiro. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1945, Raulzito, como era chamado, cresceu em uma família de boas condições financeiras, tendo acesso a uma boa educação e também aos muitos livros da biblioteca particular de seu pai, onde passou a maior parte da sua infância, segundo ele mesmo. 
Sua infância e juventude voltada aos livros o tornaram um homem com interesse em muitas áreas de conhecimentos como a filosofia, a física, a metafísica, a teologia, a astronomia e muito mais. 
No ano de 1984 o Brasil já havia vivido quase todos os anos de ditadura civil-militar que pôde. Esta, que viria a findar em 1985, teve como suas maiores características a caça e censura aos artistas, intelectuais e, sobretudo, militantes ligados a organizações de esquerda. O Estado Militar, por meio de Atos Institucionais, censurou praticamente toda forma de levar notícias reais ao povo. Todo veículo de mídia era submetido a uma avaliação crítica feita por um militar encarregado. 
Foi no meio disso tudo que surgiu uma música difícil demais para ser censurada, divertida demais para não ser ouvida nas rádios e crítica demais para ser esquecida: “Metrô Linha 743”. 
Vamos à letra:
Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiadoCheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Este primeiro trecho é talvez o mais importante em termos de críticas ao que acontecia no país. O eu lírico da canção é um homem adulto que parece estar um tanto alheio às coisas que estavam acontecendo naquele período e, ao encontrar alguém que estava mais bem informado, começa a ouvir do seu interlocutor, por entrelinhas, os perigos que ambos corriam pelo simples fato de estarem pensando ou conversando um perto do outro.
Ele disse: eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Aqui temos uma das grandes pistas do que está acontecendo no cenário da canção. O homem que estava fumando seu cigarro sente medo de que outra pessoa pare e fume perto dele pois, nos tempos da ditadura, além da constante sensação de estar sendo vigiado pelas polícias políticas, qualquer tipo de reunião poderia soar como um murmurinho a fim de dar inicio a um movimento revolucionário.
Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Nesta parte temos mais uma grande crítica: um Estado repressor e autocrático não confia em intelectuais e jornalistas comprometidos com a verdade. Quando o interlocutor diz que o prato mais caro é “o que se come cabeça de gente que pensa” ele está pura e simplesmente falando que para o governo, intelectuais e universitários eram os mais procurados por conta de sua capacidade de não cair nas propagandas que visavam dar uma falsa sensação de que tudo estaria muito bem no país. Assim como o trecho “Perdi minha pena nem sei qual foi o mês” refere-se ao fato de que todos que exerciam o ofício da escrita, em algum momento, sem aviso ou sem motivo claro eram vedados de publicar em jornais e revistas, desta forma, tendo que procurar outros empregos para sobreviver. “Perder a pena” é uma maneira figurada de dizer que perdeu o direito de escrever já que a pena de nanquim é um dos símbolos da escrita.
O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumandoTrês outros chegaram com pistolas na mãoUm gritou: mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneosEu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aquiOutro disse: não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensandoEu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usandoE aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chãoEu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743
A partir desta estrofe, a canção começa a tomar um caminho mais ilustrativo, onde três homens armados (provavelmente militares pois, ao ser abordado, o sujeito pergunta se é pra entregar seus documentos) abordam o sujeito e, diferentemente do esperado, não querem ver seus documentos ou saber se ele era ou não uma ameaça ao Estado: estes homens querem saber sobre o quê o personagem estava pensando para poder fazer uma análise do valor que se poderia cobrar por sua cabeça, pois como dito “Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando”. Logo após, o sujeito já pode ver seu corpo sem sua cabeça. Ele perde sua cabeça (por cabeça, podemos tomar outros significados como senso crítico, capacidade de duvidar, intelecto) sem sequer perceber o momento em que isso ocorre, sem ser investigado, sem ter cometido crime algum. Aí encontramos a grandiosa crítica sobre a arbitrariedade das prisões no período militar.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tieteFui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôsSenti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou griladoQuem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibaisMas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu DeusCuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocêsEu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743
E, por fim, a estrofe mais pesada apesar de mais metafórica. No início da estrofe o personagem narra sua “cabeça oca” sendo jogada no lixo da cozinha e passando a viver como um cérebro vivo a vinagrete. Ora, para bom entendedor meia palavra basta. Este trecho fala especificamente sobre os cenários de tortura onde o sujeito da música, mesmo quase sem saber o que se passava no país, é confundido com líderes de esquerda e por isso é conduzido por algum militar de escalão médio (na pessoa do Maître) à sala onde seria interrogado. Ao chegar lá ele se vê ao lado de mais dois outros sujeitos, porém estes dois pareciam ser “pratos raros”, ou seja, pessoas muito procuradas pelas forças militares. Seguindo ele diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado” o que denota toda a dor de estar sendo fortemente torturado sem ao menos saber exatamente porque aquilo estava acontecendo. 
Fechando o trecho, o personagem da música deixa um recado póstumo: “cuidado brother, cuidado sábio senhor...” e “eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês”. Aqui temos o recado de que já não havia mais certo ou errado, culpado ou inocente: qualquer cidadão, mesmo o mais desinformado, estava à mercê dos caçadores canibais que, com gosto, devoravam cabeças sem medir a gravidade de seus atos.
Chegamos até aqui e você deve estar se perguntando: “Ora, mas o que isso tem a ver com esse tal Metrô Linha 743?”. Muito simples! Perceba que o nome do Metrô surge de repente e fora de contexto ao final de cada estrofe; e que cada estrofe é uma espécie de denúncia a algum tipo de atrocidade causada pelo governo da época. Esta é a cereja do bolo desta grande lera. O Metrô que surge ao final de cada relato é uma alusão ao que estava acontecendo com os jornais e rádios da época. Com a censura imposta e o controle do governo sobre os veículos de mídia, nada do que acontecia podia ser noticiado, sequer comentado pelas ruas. Para, então, que os jornais tivessem o que falar e para que os brasileiros de regiões mais afastadas vivessem com sensação de que as coisas estavam todas funcionando muito bem, as notícias a que os cidadãos tinham acesso eram sempre relacionadas a alguma obra de Metrô, Trem ou Estrada que estavam sendo construídos ou reformadas para maquiar o desgoverno que se fazia.
Esta canção é uma obra prima do livre pensamento e da resistência contra toda forma de censura e de opressão. É um alerta para que nós, hoje, entendamos que se deixarmos que isso tudo aconteça mais uma vez, seja por apoiar ou por não entender exatamente o que está em curso, em algum momento qualquer um pode se tornar uma vítima pelo simples fato de estar pensando.

Bailarina

Olhos nos olhos me prendem
Quero voar no teu olhar, me entende...
Quero dançar como a bailarina:
pés machucados da caminhada, 
corpo leve das conquistas...
Me dê a mão, às vezes me desequilibro... 

Danço enquanto uma plateia me atira
qualquer coisa que possa me ferir
E quase ninguém que dança comigo
me entrega rosas sem espinhos...
Eu não chamei ninguém para assistir,
chamei você para dançar...
Mas eu entendo: é poético ver a bailarina
sangrando e girando... Respingos...
Tento continuar...

Tantos passos ainda novos
e os velhos que não domino...
Eu danço só... Me dê a mão... Desequilibro...
Vem um vento forte, me empurra...
Voou... Vou...
O vento para... Caio... A chuva me molha...
Os passos escorregam, as roupas pesam, me desvisto...
E me revisto de mim... Danço...
Até que um dia esse espírito me deixe...
Não serei eu, não precisará me dar a mão...
Espírito que voa com o corpo ao chão
Olha que linda, a bailarina na caixinha...
Não sou eu.

Vanuza Alves

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Poema para o Século XXI

Temos visto crescer ultimamente
o egoísmo no coração de muita gente.
Troca-se o TODOS pelo EU.
Troca-se o NOSSO pelo MEU.
O resultado catastrófico dessa operação
se estampa na violência, na intolerância, na exclusão.

Preconceito. Xenofobia.
Racismo. Homofobia. Misoginia.
Frutos de uma árvore que outrora incineramos,
sementes que ameaçam o futuro que esperamos.

É preciso relembrar que a convivência
é parte integrante de nossa essência.
Acolher o outro, respeitar a diversidade
é mais do que mero exercício de alteridade:
é sinal de HUMANIDADE!

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Metamorfose


Eu sou uma mistura de personalidades, personalidades que encontrei ao longo de minha vida e que moldaram meu eu, ocultando de mim mesmo o meu verdadeiro ser. Assim, sucessivamente, eu vou moldando outras personalidades com o que se formou em mim, querendo ou não.
A música inspira e de certa forma modifica e faz o seu eu agir de acordo com o sentimento ali representado, elevando-o acima de sua condição. Com sua beleza ela se torna a trilha sonora da vida de muitos, fazendo o indivíduo sentir com sua melodia e raciocinar com sua letra, entrando em um estado de reflexão ou impulso constante, sem ao menos perceber: tudo ocorre no subconsciente, onde há nossos pensamentos mais profundos, quase que de encontro com o espírito.
A compreensão é inútil para quem não tentar compreendê-la. Tudo é muito mais do que imaginamos. Devemos sempre pensar em consequências, fatos e sentimentos. Somos seres simples, mas que aos olhos de quem não pensa parecemos tão complexos quanto qualquer coisa que ache complicada. Como muitos sofrem para ser feliz, quando a única coisa necessária é querer...

Henrique Silva

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Uma folha em branco


É curioso notar a potência - a tamanha potência - de um objeto tão simples e tão presente em nosso cotidiano: uma folha em branco. Em outros contextos ela teria virado arte (avião, origami, bola de papel, pintura), rascunho (de desenho, de música, de carta, de texto, de vida). No entanto, agora ela me interpela, me coloca contra a parede: "Cá estou diante de você. E agora, o que você vai fazer?". Estou mudo. Não sei o que dizer. Pensei em escrever sobre alguma corrente filosófica, sobre os grandes temas da educação. Até arrisquei um ensaio sobre a potência de objetos simples enquanto forças mobilizadoras do pensamento. E então? Nada. Talvez a liberdade de escolhas de temas diante de uma folha limpa e não utilizada seja a mais perfeita alegoria da vida. Um perfeito paradoxo: a liberdade que aprisiona. Que não me permite fugir de mim. Que me obriga a dizer quem sou. Que me permite me tornar o que sou. Isso me faz recordar Sartre, Nietzsche... Filosofia. Infelizmente já não há mais tempo. A folha já não está em branco.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

A educação admirada

Hoje eu vi uma linda cena
Essa me arrancou sorrisos
Um senhor muito educado desceu do ônibus
Desejou bom dia a todos
Tirou o chapéu e ao motorista agradeceu
Uma cena tão inocente
Ao mesmo tempo inusitada e diferente
Me fez pensar em como tudo era antigamente
O ser humano era mais valorizado
A educação não era algo raro
Desde cedo o jovem aprendia
Como tratar e respeitar a todos com maestria
Me questiono onde tudo mudou
O que fez tudo chegar, onde chegou
Jovens não valorizam os mais velhos
Respeito e educação são coisas do outro século

Veronica Silveira

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Duas rosas e uma lua

Fotografia sobre a primeira noite de 2018 - Arquivo pessoal

De todas as paisagens possíveis para se admirar
Eu me perco neste Céu, nas estrelas e no luar.
É tão misterioso a forma como ele ilumina.
É algo inspirador, motivador, que me anima.


Uma Lua, suas fases,
Consegue estar ao mesmo tempo em vários lugares.
A lua cheia é a mais admirada
Imagina a olhar por uma longa estrada?


Sobre o dia, a natureza, também irei citar.
As rosas para mim, tem um símbolo particular.
Para cada cor de rosa um significado,
Como presente é uma demonstração de ser amado.


Duas rosas e um luar,
entendam aonde quero chegar.
Não é sobre olhar para o céu e encontrar essa imagem.
É sobre ter na memória como bagagem...


Várias luas, várias rosas, várias histórias.
Um livro de lembranças.
É sobre poder refletir sobre suas andanças.
Outro ano se inicia e melhor você pode ser
Só basta você então querer.

Veronica Silveira

sábado, 2 de junho de 2018

Jesus Cristo e Marielle

O evangelho deste domingo (Mc 2, 23-3,6), tem um “versículo discreto” que diz muito a respeito de que tipo de humanidade Cristo sempre pretendeu na sua missão de fazer acontecer o Reino de Deus. Antes de curar certo homem da mão seca (cf. Mc 3, 1), Jesus coloca-o no meio, no centro: “Levanta-te e fica aqui no meio! ” (Mc 3, 3). É isso que Cristo quer dos seus seguidores, que sejam capazes de trazer para o meio quem tem necessidade de cuidados, de atenção. 
Ao lembrar disso, recordo Marielle, morta dia 14 de março deste ano e que hoje completa-se 80 dias de não resolução de seu caso. Seu histórico, suas lutas, sua causa e convicções traduzem e nos dão noção dessa mesma atitude de Jesus, de colocar a humanidade sofredora no centro de todo o cuidado. Sim! Ela defendia os prediletos de Jesus. Ela estava no mesmo lado de Jesus. Não neguemos!
As semelhanças das atitudes de Marielle com as muitas de Jesus, se dá também no fim de suas vidas. A vida dessa “mulher ousada”, foi ceifada por uma submetralhadora HK MP5 e ancorada em uma não resolução do caso. Quem manda querer se preocupar tal e qual a Jesus, mulher? Quem mandou se preocupar com os que ocupam as margens de nosso país? Quem mandou trazer os homens e as mulheres para o meio? 
Jesus, depois de restabelecer tantas outras vidas, foi morto. Não com uma submetralhadora, mas condenado numa cruz. Em dias como nosso, quem se detêm seriamente em trazer quem está a margem para o centro, não tem tempo para perceber os que tramam sua morte e defender-se a si próprio. Se entrega tanto ao outro, que esquece de si. “Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo” (Mc 3, 6). 
Cristificar-se até a doação da própria vida.

Frei Leandro Costa, OFM

domingo, 1 de abril de 2018

Verbetes de um dicionário sartreano

Vida (vi.da) s.f. 1. Conjunto de improvisos. 2. Sucessão inevitável de decisões e responsabilidades das quais não se pode abster-se // Jaula da liberdade. 

Ana Beatriz Belo Guimarães

segunda-feira, 26 de março de 2018

Filosofia de si: olhar o passado, vislumbrar o futuro

Imagino que, a essa altura, você já pensava em desistir de nós. Talvez estivesse se perguntando o motivo de tanta demora, a razão que explicaria um recesso tão longo... Talvez estivesse aflito, insone, lutando bravamente contra a ansiedade compulsiva. Aposto que chegou a redigir diversas versões de e-mails que seriam encaminhados à Mônica, ao Gabriel, a mim, ao ministro da cultura, ao Papa, exigindo o retorno de tão belas e provocadoras reflexões. Ou talvez - alternativa mais bem provável - nem sentiu nossa falta e tudo o que eu disse não passa de um mero devaneio cego de minha vaidade estrábica.  
Enfim... Com saudades ou sem saudades, há exatos quatro anos  - dia 26 de março - nascia "O Saber Inútil". Criado inicialmente com o propósito de ser um recurso para as aulas de Filosofia que lecionava na rede pública, através do qual eu disponibilizaria aos estudantes uma gama de materiais diversos, o blog se converteu num espaço onde passei a despejar, em palavras, o que sentia e pensava a respeito de minhas experiências particulares com a vida, o mundo, as pessoas, a Filosofia.
Em 2016 ele ganhou um novo visual e passou a contar com as contribuições de minha grande amiga Mônica Soares. No ano seguinte, passamos a contar também com as contribuições de outro grande amigo, Gabriel Paixão, e com contribuições esporádicas de leitores, filósofos, poetas, artistas... Pessoas incríveis que não tinham espaço para divulgar seus talentos e ideias. Em quatro anos: publicamos 45 textos, atingindo a marca de 4.595 visualizações em 10 países diferentes!
Em meio a tantas transformações, o nome permanece. Ah, o nome... Nosso rosto, nossa identidade! Resistência e re-existência! Uma crítica à concepção utilitarista da vida, segundo a qual tudo o que é útil deve ter uma aplicabilidade prática. O fato é que as melhores coisas da vida - o amor, a felicidade, a filosofia, a arte, as pessoas... Nada disso tem uma aplicabilidade prática, uma razão teleológica externa. Nada disso é útil ao mercado - ou não deveria ser. O que há de melhor na vida tem um fim em si mesmo. E é justamente a isso que o NOSSO blog se propõe.

Que 2018 seja fecundo de ideias e boas vibrações!