quarta-feira, 5 de maio de 2021

Entrelinhas #2 - Quem tem medo do Comunismo?

Fonte: Boitempo 
A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade sua o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande eficácia os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fiéís gozavam de grande estima. Não havia necessitados entre eles. Os proprietários de campos ou casas vendiam tudo e iam depositar o preço da venda aos pés dos apóstolos. Repartia-se, então, a cada um segundo a sua necessidade. José, chamado pelos apóstolos de Barnabé, que significa filho da consolação, levita e natural de Chipre, possuía um terreno. Vendeu-o e foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos. (Atos 4, 32-37).
Antes de iniciarmos um bate-papo sobre essa obra de Marx e Engels que apresento a vocês nessa belíssima edição comemorativa dos 100 anos da Revolução Russa (1917-2017), quero fazer uma pequena ressalva: embora esse pequeno artigo componha a série "Entrelinhas", que iniciamos há muito tempo, meu objetivo não é revelar ideias supostamente ocultas no texto, tampouco apresentar uma análise profunda da obra. Pretendo apenas partilhar algumas impressões da primeira leitura, das reflexões que me ocorreram a partir daí e do contato com a obra nessa edição.  
O livro que tenho em mãos reúne os seguintes textos: Manifesto Comunista; Prefácio (do Manifesto Comunista) à edição inglesa de 1888, por Friedrich Engels; Teses de Abril e Cartas de Longe, de Vladímir Ilitch Lênin; e introduções (ao manifesto e às teses) por Tariq Ali. Além da beleza da composição no que se refere aos elementos gráficos, estamos diante do trabalho rigoroso de uma editora que, em 20 anos de existência, conquistou 13 prêmios. Considerando a densidade dos textos, decidi abordar nesse momento apenas alguns aspectos do Manifesto Comunista. 
"UM ESPECTRO ronda a Europa - o espectro do comunismo". Com essa frase emblemática os autores principiam o texto. E eu a escolhi apara iniciar as reflexões que não se encerrarão aqui porque uma frase semelhante vem sendo proferida, há alguns anos, por pessoas que supostamente desejam "salvar" o Brasil de uma ameaça terrível: "Um espectro ronda o Brasil - o espectro do comunismo". Essa afirmação equivocada finalmente me trouxe até Marx e Engels, e é em razão dela que inicio essa jornada. 
No que se refere à fluidez de leitura, diria que pessoas que possuem certa familiaridade com textos filosóficos podem ter mais facilidade para compreendê-lo. Entretanto, o texto (e penso que os autores também) não exige do leitor uma iniciação à Filosofia para compreensão das ideias ali expostas: o raciocínio é explícito, preciso, objetivo. Ademais, as introduções e a boa vontade de procurar informações adicionais sobre o contexto em que o texto fora produzido e os filósofos que inspiraram os autores (Hegel, por exemplo) também podem colaborar para a compreensão do texto. 
Algumas críticas amplamente difundidas a respeito do comunismo - a falibilidade de sua aplicação em modelos de sociedade ou a equivocidade da previsão dos autores em relação à extinção do capitalismo ainda vigente - revelam o total desconhecimento da obra: afinal, o Manifesto não é um manual de instruções. Toda e qualquer revolução pressupõe a ação de inúmeros elementos. À guisa de ilustração, Lênin expõe nas Cartas de Longe (presentes nessa edição) de maneira didática os fatos que contribuíram para o sucesso da Revolução Russa. Quanto à "vigência" do capitalismo, diria que o tema merece um texto à parte. Uma análise mais aprofundada. Mais leituras. Deixo apenas uma provocação: permanece vigente a que preço e por quanto tempo?
Para encerrar a pequena reflexão de hoje, gostaria de tecer um breve comentário acerca da escolha do versículo bíblico utilizado como abertura dessa reflexão. Para os autores, a religião é um instrumento de dominação que deve ser superado. Talvez por isso a escolha do versículo bíblico incomode tanto os marxistas/marxianos mais ferrenhos, quanto os cristãos mais ortodoxos. Observando a atuação de alguns líderes religiosos, tenho que concordar com eles, mesmo sendo cristão católico. Arriscaria dizer que no século XXI Jesus Cristo não seria cristão, e muito provavelmente seria preso ou morto em nome de determinados "valores", "morais", "tradições". Observando a passagem bíblica destacada, percebo que o legado deixado por Jesus Cristo é a construção de uma sociedade onde a justiça social esteja plenamente efetivada, ideal igualmente perseguido por Marx e Engels. Observando o Brasil de hoje com todos os seus problemas sociais, políticos e econômicos, refaço a você a pergunta que nomeia esse texto: quem tem medo do comunismo?

Referências

Atos dos Apóstolos. Português. In: Bíblia sagrada. Trad. Mateus Hoepers (Novo Testamento). 50 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 1287-1324. 

MARX, K; ENGELS, F; LÊNIN, V. I. Manifesto comunista/Teses de abril. Textos introdutórios de Tariq Ali. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.