quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Todos os caminhos me levam a...


Ainda acho engraçado como as coisas surgem em minha mente em momentos inoportunos. Comparo isso a um parto natural onde a mulher, apesar de saber da gravidez e esperar pelo gerado, se assusta quando ele inicia sua jornada de destruição e construção. Fico grávida mentalmente e nunca sei exatamente como será o parto nem o que nascerá. Seria bem melhor eu estar dormindo a essa hora, mas não. Estou sentada em minha sala assistindo a um programa político e nem sei como esse parto iniciou. Mas, já que aconteceu, estou aqui, mais uma vez a escrever.
O programa mostrou o funeral de um exilado político e após o relato de seu neto me vieram à mente todos os velórios que já presenciei. Isso me fez perceber o quanto de memória enterrada tenho em minha mente... De fato ela é quase um cemitério ambulante. Vou encarar isso como algo positivo: afinal, se temos o que recordar é porque pudemos viver.
Todo esse assunto me remete à uma crônica que que li há um tempão atrás e que já não me lembro bem de quem era. O autor relatava o envolvimento de um homem com uma casa velha, de mais de cem anos. Sabemos que casas assim têm muita coisa pra conta -  pena que são mudas! (Vou abrir um parêntese aqui: Ta aí uma coisa que, se um dia eu pudesse falar com Deus, eu o aconselharia a mudar. As coisas "inanimadas" devem ter muito a contar, imaginem só... Elas ficam ali, paradas no silêncio dos cômodos. Não se intrometem em absolutamente nada, mas presenciam muitas histórias.) Voltando à crônica, um homem comprou essa casa centenária e ficou tão apaixonado por ela que queria descobrir tudo que ela já tinha vivido (viu como devo aconselhar Deus?). Então, ele decidiu retirar aos poucos as camadas de tinta das paredes dessa casa: a cada camada retirada ele podia ler tudo o que a casa tinha presenciado. A cada camada retirada mais apaixonado ele ficava. Seu desejo era ler a alma da casa, saber exatamente quem ela era. A cada leitura o homem se entregava às emoções impregnadas naquelas paredes: sentia dor, alegria, mágoa, amor, desespero. Foi a mais linda e maravilhosa experiência estética da vida desse homem.
Muitas vezes as lembranças eram pesadas e o empurravam para abismos intermináveis. Nesses momentos até pensava em desistir. Ele já não percebia mais o limite que o separava da casa: eles já se pertenciam um ao outro. Mesmo sem saber como lidar com todo aquele peso, ele continuou. Quando chegou à última camada sentiu uma das maiores alegrias de sua vida, mas foi muito rápido e logo essa sensação desapareceu. O homem, já não tendo mais o que retirar, ficou atordoado.  Precisava continuar aquela busca desenfreada pela essência da casa, mas não havia mais o que ler. Acabou. Não entendia o que tinha feito de errado, acreditou ingenuamente que chegando ao fim seria presenteado com uma verdade absoluta. Passou dias sem entender como que a sua paixão, que antes o iluminava, agora o mantinha na escuridão.
Percebeu, enfim, que a casa não era nada sem as suas camadas. Eram suas memórias, suas vivências que a faziam ser o que era: uma essência construída e lapidada por cem longos anos. E foi nesse momento que se deparou com as inúmeras possibilidades de inserir mais camadas de vida naquelas paredes e fazer de suas lembranças algo imortal. 
Bem... Já não lembro mais se a crônica era realmente assim. Apostaria as estrelas com você que nesse texto tem muito mais do meu DNA do que do autor. O azar é todo dele: ninguém mandou publicar algo que possa interessar a alguém e ser surrupiado sem nenhum pudor, muito menos por uma menina sem compromisso moral de pagar pelos direitos autorais. Mas isso tudo foi apenas para explicar o meu parto e inspiração, que é o seguinte: muitas vezes tiramos tantas camadas de nossa alma que chega um momento em que não nos reconhecemos mais. Quando isso acontece, é importante vestir novamente algumas delas. Não nos descobrimos apenas quando nos despimos de nós, muitas vezes nos encontramos quando voltamos o olhar para nossas antigas roupagens. Algumas não servem mais, mas ainda assim vale a pena darmos uma olhadinha para elas, apenas como uma referência do que já fomos. Pare um momento e pense: quantos de você o habitam? Temos aqui uma possibilidade de viajar em nós, viajar pelos nossos momentos e perceber que somos um conjunto de nós mesmos: somos o nosso céu e o nosso inferno, somos o que éramos e o que queremos ser. E ter a possibilidade em nossas mãos é a oportunidade perfeita de nos tornarmos a causa de nós mesmos e não o efeito de algo.
Discordo do ditado que diz que recordar é viver: não, não e não! Recordar é recordar, viver é isso aqui agora: eu sentada no sofá com o computador no colo e a TV ligada onde passa uma novela bem antiga. Recordar é nos reconhecermos em outras roupas, com outros penteados, e isso é imutável.  Agora o "agora" está bem em minhas mãos: sou senhora do tempo, do meu tempo e do meu futuro. Ah, o futuro! Desse eu nem vou falar. Afinal, não é à toa que a parte mais gostosa da bolacha fica no meio, a salsicha fica entre os pães e o melhor calor é aquele que nasce entre dois corpos. Mas não se esqueça jamais que quando misturamos o molho no purê de batatas eles nunca mais se separam.