segunda-feira, 18 de maio de 2020

Linhas de fuga*

Linhas de fuga. 
É isso. 
Linhas de fuga. 
Não sei ao certo de que modo Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram esse conceito em suas obras, mas eles não se importariam em me emprestar por instantes ao menos alguns matizes dessa concepção. Eles nunca pretenderam estabelecer uma escola de pensamento que viesse a lhes interpretar, post mortem, de maneira exegética. Creio até que, se estivessem vivos, eles me diriam: 
“ — De que maneira esse conceito funciona em seu mecanismo? Quais os fluxos ou cortes de fluxos podem ser estabelecidos entre vocês?”. Eles fariam essas perguntas por uma razão muito simples: somos máquinas. Máquinas desejantes! Maquinar é a atividade própria da máquina. É possível maquinar linhas de fuga diversas: linhas que vão de si para si, de si para o outro. De si para o mundo. Linhas de fuga revolucionárias. Essa é uma atividade que requer doses de sobriedade e embriaguez. Sobriedade para traçar estratégias, estabelecer distanciamentos e contiguidades, tangenciar curvas, dobrar obstáculos. Embriaguez para caminhar enquanto muitos correm, para escutar enquanto muitos falam, para silenciar enquanto muitos gritam. Uma vez em movimento, Deleuze e Guattari nos diriam que essas linhas de fuga podem nos sujeitar a acontecimentos cuja experiência dependerá de uma série de agenciamentos: você aqui, comigo, nesse texto. É um acontecimento das linhas de fuga que maquinei. E talvez das suas também. E que só foi possível em função de uma série de agenciamentos. Ou circunstâncias. Poderia não ter acontecido, mas aconteceu. Já que está por aqui, proveito para perguntar: quais são suas linhas de fuga?

*Texto publicado originalmente no primeiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O ensino de música na educação bancária

Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação” (FREIRE, 2019, p. 119).
Na realidade prática das escolas privadas que, sobretudo hoje, atendem em grande parte a chamada classe média, é facilmente percebida a presença e suposta alta valorização do ensino de arte, principalmente, o da música. Não por esta ser uma linguagem artística de maior valor, ou por preferência específica daqueles que formulam a matriz curricular do colégio — ainda que isso possa de fato influenciar — mas sim por seu resultado comercial, que muito dialoga com a cadeia de indústria fonográfica hoje dominante. O educador musical que chega à sala de aula na esperança e anseio de, enfim, pôr em prática toda a bagagem teórica adquirida em três ou quatro anos de formação nos cursos de licenciatura da área, certamente sente-se rapidamente perdido e desanimado em sua atuação. Anos de estudo e suposto preparo para, agora, parecer que nada funciona? Que todas as “fórmulas” de sucesso metodológico em música não contemplam as reais necessidades da escola e, por consequência, de seus alunos? É provável que, em uma primeira leitura e reflexão sobre a situação, sejam essas as perguntas surgidas. Mas cabe novas questões que podem alterar todo o rumo de pensamento do educador nesse momento:

1. Quais são essas reais necessidades da escola com as aulas de música?
2. O que então esperam e precisam de fato os alunos de sua aula?

Respondidas essas duas, criticamente e com distanciamento, pode ser proveitoso se fazer mais estas questões: 

3. Essas necessidades da aula de música, apresentadas pela escola, tem qual objetivo? 
4. Como se sentem os alunos diante dos “caminhos” deste objetivo: animados? Desanimados? Curiosos? Cansados?

Se, ao se permitir tais perguntas, o educador chegar a uma conclusão geral de que o objetivo final da escola com suas aulas é uma apresentação, por exemplo, talvez haja um problema. Se os sentimentos envolvidos na pergunta de número 4 forem “desanimados”, “cansados”, como sugeridos, daí o problema é ainda maior.
A educação libertadora que se opõe à educação bancária, como proposto pelo educador Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido (2019), abre nossa visão para o seio do problema real dessa angústia prática na educação musical. Quando Freire diz: “Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”, pode-se entender que qualquer projeto, tópico ou conteúdo abordado em aula deve surgir a partir das necessidades dos educandos, daqueles que de fato participam da aula, e não da necessidade institucional. Não é comum perceber um desencontro entre o anseio da turma para com a aula e os anseios institucionais da escola com esta mesma aula? Será que este desencontro não nasce justamente porque um não contempla o outro? E por que um não contempla o outro? Por que escola e alunos, que deveriam estar unidos num mesmo objetivo, se desencontram? Cabe aqui uma quinta e fundamental pergunta:

5. A quem ou ao que a escola serve?

Observe o dia a dia escolar. Suas reuniões pedagógicas — caso estas ocorram e os pedidos e questionamentos por parte da direção e/ou coordenação pedagógica: você percebe a citação recorrente de “pais”/“mães” como sujeitos nesses pedidos? Se sim, parece, ainda que de longe, que estes exercem algum domínio ou influência sobre os caminhos traçados pela escola? Muito provavelmente, diante de todo este cenário aqui exposto, tanto tais citações quanto sua influência são verdadeiras. E isso está diretamente ligado às suas aulas, caro(a) educador(a). Se pais e/ou mães são identificados como influenciadores nos caminhos que a escola traça, uma conclusão é evidente: a escola serve aos pais e/ou mães dos alunos, não a eles. E talvez esteja aí a falha geradora de toda a instituição. 
Pensemos nessa linha de “quem-serve-a-quem” dentro da escola, seguindo o raciocínio construído até então:

Fonte: o autor, 2020. 

A escola serve aos pais e/ou mães. Para que a escola possa atender aos pedidos dos pais e/ou mães, ela precisa de uma rede — pessoas — que a auxilie nessa conquista. Quem são essas pessoas? Quem forma essa rede que desenvolve diferentes atividades e ações que resultam em algo escolar — seja uma prova, uma feira, uma apresentação e etc? Só uma classe específica dessa rede me vem à mente: os professores. Seria lógico então, nesse raciocínio, considerar que os professores servem a escola, ampliando nossa rede:

Fonte: o autor, 2020. 

Nessa hierarquia os professores também necessitam de braços que possibilitem sua parte ser feita. Esses braços, como deve ser fácil a todos concluir, pertencem ao corpo discente, em outras palavras, aos alunos. 
Sendo o alunado uma massa técnica de indivíduos cujo objetivo escolar não ultrapassa a rasa função de cumprimento “estético-burocrático”, suas atividades pedagógicas em quaisquer disciplinas, inclusive nas linguagens artísticas, como música, se tornam superficiais e perdem a essência que está exatamente no desenvolvimento do pensamento crítico, analítico e reflexivo. O modelo de educação bancária, como propõe Freire (2019), nada mais permite aos estudantes do que tornarem-se depósitos de conteúdos previamente estabelecidos para eles. A educação musical, por sua vez, choca-se a esse propósito burguês no âmago de suas diretrizes que vem ganhando destaque de meados do século XX até hoje: realizar modelos de ensino artístico a partir dos saberes prévios do grupo a quem as aulas se destinam e a elas, consequentemente, tem todo o domínio dos caminhos que deve seguir. Uma vez que essa liberdade didática não lhes é dada, o ensino da arte perde sua potência singular de resistência ao modelo tradicional de ensino, tornando-se igualmente parte do mesmo sistema castrador e regulador das estruturas socioeconômicas — bem como de suas desigualdades consequentes — e quebrando possíveis expectativas nos educandos, que pouco ou nenhum valor enxergarão no fazer e educar artístico. 
A visão bancária da educação em nenhum momento entendeu o ensino de arte — seja qual for a linguagem — como processo intrínseco da educação integral e de direito universal de todo e qualquer indivíduo. Pelo contrário, a entende e manipula seus desdobramentos apenas com o intuito de manter os propósitos capitais que uma educação como produto defende. Como educadores, alinharmo-nos a essa lógica é tornar necrófila — tomando de empréstimo outro termo adotado por Freire (2019) — toda e qualquer justificativa que se possa dar para o incremento e ampliação do espaço e valorização do ensino de arte na educação básica. Se, de alguma forma, sua inserção nas escolas-banco não for minimamente subversiva à esta lógica, é possível que em pouco tempo não haja mais sequer a necessidade do showbussiness que ainda nos mantém, mesmo em tais condições, no espaço educacional privado.


Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 70 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2019.



Junior Azuos

Educador musical e pianista, graduado no curso de Licenciatura Plena em Música do Centro Universitário Fiam-Faam. Atua como educador em escolas filantrópicas e da rede privada de educação infantil e ensino fundamental. 

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