segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Brincadeira literária*

As redes sociais são uma fábrica de distrações. A última que tive contato foi em forma de brincadeira literária, e consistia em publicar capas de livros de sua preferência. O número de indicações era limitado em sete e não poderia mencionar nada sobre os livros: apenas a imagem. Triste desafio para quem adora conversar sobre os livros, falar sobre as características das personagens e até mesmo dar e receber spoilers — mas somente em situações previamente autorizadas! Como poderia ficar sem falar das leituras que tanto gosto? Como conter toda a empolgação ao narrar minimamente a sinopse de um livro ou explicar que é impossível não torcer pela personagem de tal história? Como não compartilhar o brilho nos olhos ao lembrar de um clássico que me tocou a alma? De fato, seria um desafio. Mas os muros para um leitor nunca são tão altos e, seguindo os passos de Max, um judeu que ficou escondido no porão de uma Menina que roubava livros, vou dar um jeito de escrever o que me transborda o peito. Só não vou desenhar, porque essa habilidade eu não tenho!
A tarefa inicial: separar os livros! Tarefa fácil, se fosse uma lista de 100 livros em vez de 7. Quero todos, pode? A cada livro que eu pegava era um momento, um cheiro, uma pessoa, uma linha de ônibus, um contexto de vida, um dia frio, um bom lugar, um Djavan...Viajei. Mas, vamos aos livros.

O primeiro livro que habita todas as minhas listas é A Insustentável leveza do Ser, de Milan Kundera. Que delícia de nome, que delícia de história! Amo esse livro e não consigo explicar porquê o amo. Dramático, inquietante, estranho e filosófico. Esse livro me mostrou o quanto somos socialmente pequenos, mas imensos enquanto seres humanos. O quanto somos complexos e vastos. Foi indicação de uma amiga, empréstimo, logo em seguida comprei o meu. Não queria apenas possuir a história, queria abraçar o livro. Eu não conseguia dormir sem ler uma página que fosse. Esse livro me conduziu a profundas reflexões.

Segundo livro, A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Essa mulher dispensa apresentações e o livro é maravilhoso. Apesar das diferenças de época, continua atual. São três contos que narram os medos, a desesperança e a condição da mulher na sociedade. Quando li esse livro estava despedaçada. As mulheres dos contos também estavam, e de certa forma isso ajudou a me reconstruir. Eu me vi naqueles contos e arrisco a dizer que aquelas mulheres se viram em mim. É a magia da leitura.

Terceiro livro, Frankenstein, de Mary Shelley. Outra mulher que dispensa apresentações. Mary Shelley foi uma mulher à frente de seu tempo. A primeira edição de Frankenstein foi lançada em janeiro de 1818: são 200 anos e ainda nos fascina. Apaixonada pela criatura, sofri ao seu lado na maior parte do tempo. Apesar de ser considerado um monstro, ele é sensível e lida com as mais fundamentais questões humanas. Foi interessante acompanhar essa criatura que desperta para sua triste condição ao ser abandonada pelo seu criador,  e poder entender suas revoltadas, seus anseios, seus medos.

Quarto livro, As cem melhores crônicas brasileiras, vários autores. Esse aqui eu considero um golpe que estou dando, pois será cem em um! Temos Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Oswaldo de Andrade, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Mario de Andrade, Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes e outros pesos-pesados da nossa literatura. As crônicas são apresentadas por anos, começando em 1850. Dessa forma, o leitor pode perceber as mudanças nas formas de narrativas, como também as mudanças dos contextos sociais. Ganhei de presente de um tio, também filósofo. Ler esse livro foi o mesmo que consumir pedaços de felicidades, ainda é uma doce recordação. Crônica sempre foi um dos meu estilos prediletos. Esse livro me acompanhou por muitos anos, ali na bolsa, guardadinho. Gostava de abri-lo e lê-lo ao acaso. A transição da escrita sempre me trouxe um certo conforto de que, apesar dos pesares, tudo passa.

Quinto livro, O Estrangeiro, de Albert Camus. Sempre que lembro desse livro paro por alguns segundos e sinto um estranhamento. O relato é em primeira pessoa, sobre a vida de M. Mersault: um homem que vive sua vida de forma livre, mas sem a consciência dessa liberdade. A personagem não se afeta com os acontecimentos em sua vida e não vive uma vida de acordo com as normas sociais, mas como deseja viver. Camus aborda a questão do significado que a sociedade tenta atribuir à existência. Quem nunca se perguntou: qual o sentido da vida? Será que tem? Li esse livro no período da faculdade. Devorei, me senti estranha. Voltei a ler alguns anos depois, senti novamente o estranhamento. Ouvi dizer que na terceira vez é melhor.

Sexto livro, A trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, de Suzanne Collins. Outro golpe à vista, três em um! Do grupo das literaturas populares. Caiu nas graças dos adolescentes, virou filme e fez um enorme sucesso. A história se passa em um futuro distópico onde os Estados Unidos da América, após total destruição, se transforma em 12 distritos e 1 capital. Para manter um determinado controle e ausência de rebeliões, a capital cria os Jogos Vorazes. Anualmente, duas pessoas de cada distrito são sorteadas para participar desse reality show mortal. Todos são levados até uma arena montada tematicamente e lutam até a morte. Esses jogos se assemelham aos combates entre os gladiadores romanos. Por que eu gosto disso? Com toda a certeza a autora bebeu de fontes preciosas como 1984, de George Orwell. Toda a narrativa levanta questões políticas de manipulação midiática, totalitarismo, opressão, discurso de ódio, consumismo, desigualdade social e fascismo. Além disso tudo, temos todo o drama da personagem que nos prende. Li os três livros seguidos. Ainda lembro da sensação de entrar nesse universo distópico e caótico do choro da personagem, dos barulhos das bombas, da raiva e de algumas alegrias, bem poucas alegrias.

Sétimo livro, Sociedade sem lei, pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie, de Rubens R. R. Casara. Com pesar, chego ao sétimo e último livro. Foi uma escolha difícil. Existem ótimos concorrentes para essa posição, mas julguei necessário escolher esse livro por conta do momento em que estamos vivendo. Também precisamos olhar e estudar sobre o nosso contexto atual. Casara é juiz de direito no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, e em seu livro trata dos danos causados à sociedade pelo capitalismo e sistema neoliberal onde o homem não é mais a medida de todas as coisas e sim o dinheiro — o homem não é coisa alguma. Fala-nos de uma sociedade construída pela racionalidade neoliberal, que resulta em uma nova economia psíquica gerando, assim, pessoas sem limites e consequentemente uma sociedade sem limites. Leitura muito pertinente. Ainda não finalizei o livro, pois para compreender ou ampliar o conhecimento vou lendo em paralelo outros livros. Desse em específico fui para Psicologia das multidões, de Gustave Le Bon, e voltei a ler Educação após Auschwitz, de Adorno. E assim, sem perceber, dou mais um golpe e indico outros dois.

O mundo da leitura é isso: transitar por vários mundos, aprender e reaprender. A leitura é também a amplitude do sensorial: é sentir uma época, um desejo, um sentimento, um aroma. É ouvir uma melodia que não está presente nos seus ouvidos. Aprender novas línguas, novos povos. É o encontro de novos olhares. É na leitura que muitos podem viver em nós. Ler é a principal ferramenta para a nossa educação. Através da leitura amplio meu conhecimento, meu repertório. Passo a olhar o mundo como um sujeito crítico, posso transformá-lo.

Talvez seja assim só para mim e para você seja de outra forma. Qual a sua forma?

Pois bem. Essa lista não tem muita coerência: está tudo misturado! Tem um pouco de tudo que gosto, mas sei que desconheço um mundo de coisas que poderia vir a gostar. Uma vida não é suficiente para ler tudo que há para ser lido, mas uma certeza eu tenho: que sempre vou amar livros e sempre vou amar ler. Livro é tão bom que deveria ser declaração, tipo: eu te LIVRO!

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub

sábado, 1 de agosto de 2020

Eterno retorno*

— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. Manter-me distante do trabalho e das coisas que me afligem. “Ora, ora. Marx diria que o trabalho dignifica o homem. É por meio do trabalho que o homem transforma a natureza ao seu redor, forjando a si próprio”. Foda-se Marx. Prefiro a etimologia que qualifica o trabalho como um instrumento de tortura. Aliás, não é esse o mesmo Marx que afirma ser o trabalho o meio pelo qual o trabalhador vende sua força produtiva tornando-se uma mera engrenagem da máquina que produz lucro às custas de vidas humanas? É cedo demais para pensar nessas coisas, mas não consigo me desvencilhar.
— Está pronto, amor. Venha antes que esfrie!
— Tô indo!
Uma xícara de café frio é pior do que trabalhar. Café fresco, bem quente e doce é outra boa sensação da vida, daquelas que queremos preservar infinitamente. Porém, o café esfria, e a quantia que permanece na cafeteira italiana já não tem o mesmo sabor e temperatura da primeira dose. Contra minha vontade — vontade impotente — me encontro de novo com a fria e amarga realidade expressa naquele dito popular: “Tudo o que é bom dura pouco”. Talvez não seja sempre assim. Talvez exista um “quase” dentro desse “tudo”.
— Que dia é hoje, meu bem?
— Terça-feira. 12 de maio.
O tempo.
Os diversos modos de vê-lo passar me trazem à recordação — de maneira muito vaga — o que Nietzsche dissera acerca do eterno retorno. Já não sei se era esse o sentido que o filósofo quis imprimir à expressão, mas com certeza ela define meu esforço constante em afastar o que me aflige e…
— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. 

*Texto publicado originalmente na seção Puxadinho do terceiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições. 

terça-feira, 14 de julho de 2020

Dentro da noite, dentro de mim

É à noite, enquanto a maioria dorme, que algo em mim desperta
Tantas coisas que pensei e queria compartilhar com o mundo
Das piores noites nasceram as coisas mais bonitas e mais tristes
Há tanta beleza na tristeza...
Acho que o inverso cria o verso...
Amores, ideias, medos, culpas, culpas, culpas...
Sempre tão juntos...
Sempre me molhando o rosto, me secando a alma... 
E paradoxalmente regando meu novo ser
Amores trazendo meus maiores medos
As culpas que assumi pra mim que nem eram minhas...
E novamente me culpo de novo por já ter me culpado
Os ideais, eu claramente sei que não fui eu que criei.
Vou responsabiliza-los por tudo...
A bebida foi a coisa mais útil, temporariamente mais útil pra fugir daqui
Mas quando voltava... Queria estar bêbada de novo...
De vez em quando me olhava no espelho e me perguntava: onde eu estava?
E agora estou aqui...
Um pouco mais lúcida, desfazendo ideais, desfazendo culpas, tentando me encontrar e me aceitar
Os medos... Não foi o pior de tudo...
Quantas pessoas sofrendo pelo mesmos motivos?
Um passo atrás do que aqui me encontro.
Lembrem-se: O inverso faz o verso
Dois lados de tudo
Fecho a porta, fecho a janela, fecho a boca e os ouvidos
Dentro de mim
Todos os meus encontros já vividos
Eu não posso me sufocar aqui dentro
Não posso me trancar...
Preciso me reescrever
O contato com o mundo me adoece e me cura
Escuto aquilo que me disse...
Lembra?
Como posso me achar só.
O que muda aqui dentro é sutil e ao mesmo tempo tão imenso...
Quem ou o quê encontrarei quando eu sair, não sei,
Mas se preparem para me encontrar...

Vanuza Alves

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Diário de Simone*

Já não basta a dificuldade de acordar mulher todos os dias em nossa sociedade, agora temos de acordar mulher em meio a uma pandemia. Nossa rotina já é pesada, agora então, parece que Sísifo não está tão sozinho assim. Talvez você esteja me achando dramática — talvez eu seja mesmo — mas é bem provável que no fim dessas linhas você assuma que na verdade não iria querer trocar de pele comigo ou com qualquer outra mulher e, sendo bem sincera, a minha vida perto da vida de algumas mulheres que conheço é muito, muito tranquila e privilegiada.
“Bom dia” me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café. Minha casa não se recuperou da noite passada, eu não me recuperei da noite passada. Pia tem louça, sofá tem roupa, livros no sofá, no rack, no chão, a gata... A gata precisa de comida, mas antes deixa eu ver meu filho. Saio da cama e acalmo meu coração vendo sua respiração, ele ainda dorme. Verifico sua temperatura, não parece doente e eu recebo como mágica um golpe de energia para descer as escadas. Ignore a bagunça: você não vai dar conta mesmo! Preciso passar o aspirador quando voltar. Tempo curto, muitas coisas, preciso me arrumar... O café! Mas, antes, a gata! Sentada no sofá verifico os noticiários. Coronavírus e suas derivações, em minha cabeça muitas reflexões: como vamos fazer com as favelas? Como estão meus alunos? Céus! E os moradores em situação de rua? Teve festa na rua de baixo. Tem muitos funcionários doentes no hospital — você não sabe ainda, trabalho em hospital — tem muita gente nas ruas preciso passar no mercado tenho dois atendimentos hoje preciso escrever aquele texto esqueci de responder a mensagem do Carlos preciso ler aquele texto do Adorno e aquele outro da Arendt como eu odeio esse presidente! Nossa... olha a hora! 
Saio de casa, queria mesmo era ficar. Minha irmã está de home office, minha mãe sempre trabalhou em casa, minha sobrinha e meu filho estão com os estudos a distância — ainda bem! Coração segue menos aflito.
— Tchau, Mãe!
— Tchau, Simone!
Sinto um pesar na sua despedida, é sempre assim. Ela teme e eu temo também, ambas fingimos que não. É próprio da mulher fingir que está tudo bem para poder continuar. Há de continuar, há de se manter. Muitas mulheres são assim, tivemos que nos construir dessa forma. Não é a primeira vez que saio de casa com medo, não é a primeira vez que minha mãe fica em casa com medo. Lidamos diariamente com ele, descansamos pouco do medo. As mulheres temem por suas vidas todos os dias e naturalizar isso também é um tipo de doença. 
A chegada ao hospital é tensa: você já entra pensando em como se proteger, mas como? Se falta EPI? Não tem para todos. Vamos pensar nos que precisam mais! Quem precisa mais? Quem lida com os pacientes, claro! Certo, mas a contaminação já é comunitária, o que significa que os profissionais podem passar uns para os outros... Vamos de “uni duni tê”?
Ao caminhar pelos corredores você se depara com diferentes profissionais, não é tão simples descobrir em qual setor aquele profissional trabalha ou de qual setor ele acabou de sair ou passar. O que ele estava fazendo antes de estar aqui? Pode estar infectado? O vírus não impôs apenas o distanciamento social, impôs uma sombra de desconfiança. Um vulto de doença em cada um que se aproxima. Nós mulheres também já estamos acostumadas com isso. Como você acha que é andar em uma rua escura e ouvir passos atrás de você ou quando você pede um carro por aplicativo? Até mesmo quando você vai conhecer alguém pela primeira vez, será que ele é um estuprador? O vulto da violência está em todos os homens até que se prove o contrário. Enfim, cruzo o primeiro corredor e nesse momento começo a sentir meu corpo um pouco mais rígido. Bem vinda, tensão! 
Ufa, cheguei segura ao meu setor... só que não! “Simone, tem aquele processo para entregar”. “Simone, fulano não veio”. “Simone, falta álcool”. “Simone, precisa ver a escala”. “O material para o paciente João não veio”. “O faturamento está atrasado”. "O Papa te ligou duas vezes”. “Cinderela! Cinderela! Cinderela...” Ops, volta! Desculpa, me empolguei. Lava as mãos primeiro e coloca sua máscara — é o que o bom senso diz e obedeço. Devido ao estado de pandemia adotamos algumas medidas protetivas, uma delas foi a redução do horário de trabalho. Lembro como se fosse ontem o apoio da chefia: “Até podemos reduzir, mas saiba que nada de errado pode acontecer, se não...". Nesses momentos, o acolhimento é o que conta, não acham? Afinal de contas, o que conta mesmo é a Mais-valia. A pandemia fez a gentileza de desvelar muitas coisas: ela desnudou tudo e todos, desde o sistema neoliberal e o quanto ele não se sustenta em toda sua mesquinharia até seu vizinho que limpou as prateleiras do supermercado. Não é mais necessário tanto esforço para ver quem as pessoas são. Foi mais ou menos como no período das eleições presidenciais, mas agora a rima é outra: vida X economia. Não, espere! A rima continua sendo a mesma: “Dinheiro: precisamos salvar. As vidas? Só se tempo sobrar!”
O setor em que trabalho é frequentado por muitos médicos. Vários desses profissionais estão bem cientes dos riscos que o novo vírus oferece, porém alguns estão confiantes que nada os atingirá e estão tão seguros que acreditam que também nada acontecerá com o restante da população, apesar de tratarem da população doente. Uma postura que me faz pensar como se deu esse processo um tanto alienante e alienador, tornando-os cada vez mais afastados de si mesmos e dos outros. Esses dias, trabalhando tranquilamente em minha sala, um dos residentes me procura para tirar uma dúvida, como faz de forma habitual. Se aproximou e muito de mim, o que não havia nenhuma necessidade, então pedi para que cumprisse o protocolo de distanciamento. Além de não ser atendida, fui surpreendida com um abraço forçado. Pois é! Ele me abraçou à força porque eu pedi para que ele respeitasse o protocolo que ele já deveria estar respeitando. A pandemia nos proporcionou uma nova modalidade de abuso: aquele que tenta te transmitir um vírus porque você reclamou do distanciamento — coitada da pandemia, não merece levar a culpa por estar de saia curta, nesse caso, por ele ser um abusador em potencial. Fui obrigada a empurrá-lo. Deveria ter feito mais, mas não fiz. Como a maioria dos homens, ele acredita que pode e está acostumado a poder e, pior, está acostumado a sair ileso de situações como essa porque nós mulheres, apesar de sabermos o que fazer na hora do abuso, de alguma forma, ficamos sem reação. Ele é médico, homem, classe média alta. Tudo isso conta muito no local onde trabalho. Qualquer reclamação que eu fizesse não daria em absolutamente em nada. Resolvi recolher minha cara e meu ódio do chão. Claro que eu sei que em uma escala de abusos esse não é dos piores, mas estamos falando aqui da violação da minha integridade, da minha vontade e do meu direito de não ser tocada — esse corpo aqui é meu, senhor! Hei! Hei! Hei! Do meu direito de ter minha saúde preservada. Mas, sabe o que é ainda pior? É termos uma escala para abusos. Pergunto-me se ele também abraça homens à força. Essa situação me fez lembrar do caso da médica Lorena Quaranta, que foi assassinada pelo enfermeiro e seu namorado Antonio De Pace. A justificativa de Antonio pela morte de Lorena foi ela ter passado o vírus covid-19 para ele. Ambos trabalhavam no mesmo hospital na Sicília, Itália. O mais suspeito é que os testes resultaram negativo para o vírus em ambos. Isso monstra como é fácil para os homens descontar sua raiva, seu descontentamento, sua ira sobre as mulheres. Como seu desiquilíbrio é direcionado para nós. Em contrapartida nós, mulheres, na grande maioria, adotamos uma postura de passividade frente aos homens. Somos culpadas pelas roupas que usamos, pelo horário em que saímos, se bebemos, se lutamos. A verdade é que nos culpam porque somos mulheres.
Hora de voltar pra casa, acabou... a metade do dia. 
Chegar em casa, deixar tudo no carro: tire os sapatos dentro do veículo, vá direto para a lavanderia, lave bem as mãos, tire as roupas e coloque-as em um saco, passe álcool em gel, vá direto para o chuveiro e não toque em nada! 
Em minha casa tenho 3 pessoas do grupo de risco: minha irmã finalizou recentemente o tratamento de câncer de mama, é hipertensa e diabética. Minha sobrinha é imunodeficiente, não produz anticorpos suficientes. Minha mãe tem 65 e possui habilidades de subir em telhados. Banho... Tento liberar a musculatura, começo a listar as tarefas mentalmente. Tensão, não foi embora ainda? 
Morta de fome. Vou comer qualquer coisa, bom senso não deixa. Precisamos reforçar a imunidade. Cozinha, lava, seca, guarda, limpa, aspira, respira, não pira. Tem cerveja? Não tem, só vinho. Serve? Não posso, vou atender — vocês não sabem, mas também sou terapeuta, segunda profissão. Para nós, mulheres, é muito comum o acúmulo de atividades. Historicamente muitas coisas são colocadas nos nossos ombros: casa, filhos, maridos, trabalhos — alguns até são remunerados, mal remunerados. Lembrei da Dona Cleonice, a empregada doméstica, uma das primeiras vítimas do Coronavírus no Rio de Janeiro. Contraiu o vírus na casa onde trabalhava de segunda a sexta. Sua empregadora retornou infectada da Itália e achou que era certo não dispensar seus empregados. Dona Cleonice era hipertensa e diabética. Seu nome não foi mencionado nas primeiras reportagens, era tratada apenas como "doméstica". Em uma sociedade que nos separa por classes e por objetos a serem usados, o que basta mesmo é saber quanto você vale. E uma empregada doméstica? Vale quanto? Seu nome era CLEONICE GONÇALVES, tinha 63 anos. 
Os atendimentos estão girando em torno da pandemia, todos estão girando em torno da pandemia. Ela nos consome e nós a consumimos, mas não tenho tempo de ser consumida: preciso verificar as lições do filho. 
— Como foi a aula, Murilo? 
— Bem, mãe! 
— Fez as atividades? 
— Sim mãe, você fez comigo. Esqueceu? 
— Sim filho, esqueci! 
Descansar. Vou ler, vou escrever aquele texto, vou planejar aquele grupo, responder aquela mensagem, quer um suco, filho? Vou ver um filme, nossa... olha a hora! 
“Bom dia”, me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café.

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub.

domingo, 14 de junho de 2020

Trabalho dos sonhos*

Que pesadelo mais sombrio! 
Estava num amplo galpão fabril, mal iluminado, repleto de camas hospitalares. As camas estavam ocupadas e dispostas em fileiras, como numa grande linha de produção. As pessoas que as ocupavam, aparentemente saudáveis, tinham conectados às suas cabeças eletrodos cujas extremidades encontravam-se conectadas a uma máquina semelhante a um computador. Máquinas, fios, pessoas e camas hospitalares repetiam-se sequencial e infinitamente compondo um cenário de ficção científica. Ao soar de um sinal, as luzes se acenderam. Paulatinamente, as pessoas que ocupavam as camas começaram a se levantar e a desconectar os fios que as prendiam às máquinas. 
— Quinze minutos para o café! 
Todos pareciam estar muito bem. Enquanto comiam, conversavam sobre os mais diversos assuntos: família, política, religião, economia, saúde, educação, a viagem das últimas férias... 
O sinal tocou novamente indicando o término do café. Todos retornaram aos seus lugares, dando continuidade às suas tarefas. Caminhando entre as camas observei que as telas das máquinas exibiam paisagens belíssimas — como se fosse possível apresentar em imagem a própria felicidade. Recordei-me de um texto de Bauman que denunciava o caráter parasitário do capitalismo, e então me dei conta de que todas aquelas pessoas estavam sonhando. Seus sonhos eram captados por meio dos eletrodos e transferidos para as máquinas. De lá seriam vendidos por um custo altíssimo a uma pequena parcela da sociedade que, diante de uma crise sanitária de proporções globais, se via incapaz de sonhar. Tentei chorar e não consegui. Gritei a plenos pulmões, mas meus lábios eram incapazes de projetar qualquer som. 
— Álvaro! Álvaro! 
— O que foi? 
— Você estava longe, meu amigo. A pausa acabou. Temos ainda muitos sonhos a produzir. Volte ao trabalho! 
Liguei a máquina. Reconectei os eletrodos em minha cabeça. Deitei na cama...

*Texto publicado originalmente no segundo volume da Revista Habitat - Artefato Edições

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O que podemos aprender com Heráclito de Éfeso

Filósofo pré-socrático, viveu entre 540 e 480 a.C. 
Como os demais filósofos do mesmo período, Heráclito estava interessado em compreender a origem de todas as coisas e a dinâmica da natureza a partir dela mesma, sem precisar recorrer aos antigos mitos ancestrais. 
Para Heráclito, as constantes transformações que ocorrem no mundo natural são a sua característica mais fundamental. Para ele “Tudo Flui” e “Nada é permanente, exceto a mudança”, tanto que é impossível “banhar-se duas vezes no mesmo rio” pois, quando mergulho no rio pela segunda vez, não sou mais a mesma pessoa e nem o rio o mesmo rio. Heráclito também aponta que o mundo está repleto de contradições ou pares de opostos. Se jamais ficássemos doentes, não saberíamos o sentido de gozar de boa saúde. Se jamais houvesse guerra, nunca daríamos valor a paz. “Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz”. Esse Deus por ele mencionado é uma razão universal, é essa natureza cheia de contradições. O termo utilizado por ele constantemente é logos, que quer dizer “razão”. Parece um tanto pessimista a filosofia de Heráclito quando observamos sua fugacidade, mas acredito ser muito mais prejudicial não compreendermos as transformações e as mudanças a que estamos sujeitos enquanto seres viventes nesse mundo em constante movimentação. 
Essa é uma síntese da filosofia de Heráclito. Se você curtiu, pesquise mais sobre o filósofo. No fim do texto vou deixar indicação de leitura. 
Certo. Vamos deixar isso mais legal e usar o conceito apresentado para refletirmos sobre nossas vidas. 
Estamos acostumados a lidar com a vida como se algumas coisas fossem estáticas ou como se pudéssemos controlar as mudanças que nela ocorrem. É compreensível: afinal de contas fazemos planos, tomamos decisões a médio e a longo prazos, precisamos de uma certa estabilidade. Parece ser impossível manipular tanta “fluidez” assim. A ideia de mudança é muito mais aceitável quando a vinculamos a algo que aceitamos ou queremos que mude. No entanto, sempre existe uma parte de nossas vidas sobre a qual não pensamos, não aceitamos ou não queremos que se altere de alguma forma, principalmente de formas inesperadas. Esquecemos que o mundo possui uma outra dinâmica, as coisas acontecem e nos atravessam sem a nossa permissão e quando percebemos tudo mudou. Fazendo uso do conceito apresentado por Heráclito, precisamos considerar a natureza em seu próprio devir (tornar-se, vir-a- ser) que não nos consulta previamente. O logos da natureza ou do mundo que muitas vezes desconhecemos não está em nosso domínio. Quando a mudança se apresenta precisamos, de alguma forma, lidar com ela. As perguntas são: como você lida com as transformações do mundo? Para você é tranquilo? Consegue identificar suas formas de lidar com as mudanças? Você é mais flexível ou menos flexível para mudanças? 
Não tem certo, nem errado: há apenas as suas reflexões acerca do seu modo de ser e de perceber as transformações do mundo que lhe cerca. 

Indicação de leitura: Os Pré-Socráticos - Vida e Obra. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Linhas de fuga*

Linhas de fuga. 
É isso. 
Linhas de fuga. 
Não sei ao certo de que modo Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram esse conceito em suas obras, mas eles não se importariam em me emprestar por instantes ao menos alguns matizes dessa concepção. Eles nunca pretenderam estabelecer uma escola de pensamento que viesse a lhes interpretar, post mortem, de maneira exegética. Creio até que, se estivessem vivos, eles me diriam: 
“ — De que maneira esse conceito funciona em seu mecanismo? Quais os fluxos ou cortes de fluxos podem ser estabelecidos entre vocês?”. Eles fariam essas perguntas por uma razão muito simples: somos máquinas. Máquinas desejantes! Maquinar é a atividade própria da máquina. É possível maquinar linhas de fuga diversas: linhas que vão de si para si, de si para o outro. De si para o mundo. Linhas de fuga revolucionárias. Essa é uma atividade que requer doses de sobriedade e embriaguez. Sobriedade para traçar estratégias, estabelecer distanciamentos e contiguidades, tangenciar curvas, dobrar obstáculos. Embriaguez para caminhar enquanto muitos correm, para escutar enquanto muitos falam, para silenciar enquanto muitos gritam. Uma vez em movimento, Deleuze e Guattari nos diriam que essas linhas de fuga podem nos sujeitar a acontecimentos cuja experiência dependerá de uma série de agenciamentos: você aqui, comigo, nesse texto. É um acontecimento das linhas de fuga que maquinei. E talvez das suas também. E que só foi possível em função de uma série de agenciamentos. Ou circunstâncias. Poderia não ter acontecido, mas aconteceu. Já que está por aqui, proveito para perguntar: quais são suas linhas de fuga?

*Texto publicado originalmente no primeiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

O ensino de música na educação bancária

Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação” (FREIRE, 2019, p. 119).
Na realidade prática das escolas privadas que, sobretudo hoje, atendem em grande parte a chamada classe média, é facilmente percebida a presença e suposta alta valorização do ensino de arte, principalmente, o da música. Não por esta ser uma linguagem artística de maior valor, ou por preferência específica daqueles que formulam a matriz curricular do colégio — ainda que isso possa de fato influenciar — mas sim por seu resultado comercial, que muito dialoga com a cadeia de indústria fonográfica hoje dominante. O educador musical que chega à sala de aula na esperança e anseio de, enfim, pôr em prática toda a bagagem teórica adquirida em três ou quatro anos de formação nos cursos de licenciatura da área, certamente sente-se rapidamente perdido e desanimado em sua atuação. Anos de estudo e suposto preparo para, agora, parecer que nada funciona? Que todas as “fórmulas” de sucesso metodológico em música não contemplam as reais necessidades da escola e, por consequência, de seus alunos? É provável que, em uma primeira leitura e reflexão sobre a situação, sejam essas as perguntas surgidas. Mas cabe novas questões que podem alterar todo o rumo de pensamento do educador nesse momento:

1. Quais são essas reais necessidades da escola com as aulas de música?
2. O que então esperam e precisam de fato os alunos de sua aula?

Respondidas essas duas, criticamente e com distanciamento, pode ser proveitoso se fazer mais estas questões: 

3. Essas necessidades da aula de música, apresentadas pela escola, tem qual objetivo? 
4. Como se sentem os alunos diante dos “caminhos” deste objetivo: animados? Desanimados? Curiosos? Cansados?

Se, ao se permitir tais perguntas, o educador chegar a uma conclusão geral de que o objetivo final da escola com suas aulas é uma apresentação, por exemplo, talvez haja um problema. Se os sentimentos envolvidos na pergunta de número 4 forem “desanimados”, “cansados”, como sugeridos, daí o problema é ainda maior.
A educação libertadora que se opõe à educação bancária, como proposto pelo educador Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido (2019), abre nossa visão para o seio do problema real dessa angústia prática na educação musical. Quando Freire diz: “Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”, pode-se entender que qualquer projeto, tópico ou conteúdo abordado em aula deve surgir a partir das necessidades dos educandos, daqueles que de fato participam da aula, e não da necessidade institucional. Não é comum perceber um desencontro entre o anseio da turma para com a aula e os anseios institucionais da escola com esta mesma aula? Será que este desencontro não nasce justamente porque um não contempla o outro? E por que um não contempla o outro? Por que escola e alunos, que deveriam estar unidos num mesmo objetivo, se desencontram? Cabe aqui uma quinta e fundamental pergunta:

5. A quem ou ao que a escola serve?

Observe o dia a dia escolar. Suas reuniões pedagógicas — caso estas ocorram e os pedidos e questionamentos por parte da direção e/ou coordenação pedagógica: você percebe a citação recorrente de “pais”/“mães” como sujeitos nesses pedidos? Se sim, parece, ainda que de longe, que estes exercem algum domínio ou influência sobre os caminhos traçados pela escola? Muito provavelmente, diante de todo este cenário aqui exposto, tanto tais citações quanto sua influência são verdadeiras. E isso está diretamente ligado às suas aulas, caro(a) educador(a). Se pais e/ou mães são identificados como influenciadores nos caminhos que a escola traça, uma conclusão é evidente: a escola serve aos pais e/ou mães dos alunos, não a eles. E talvez esteja aí a falha geradora de toda a instituição. 
Pensemos nessa linha de “quem-serve-a-quem” dentro da escola, seguindo o raciocínio construído até então:

Fonte: o autor, 2020. 

A escola serve aos pais e/ou mães. Para que a escola possa atender aos pedidos dos pais e/ou mães, ela precisa de uma rede — pessoas — que a auxilie nessa conquista. Quem são essas pessoas? Quem forma essa rede que desenvolve diferentes atividades e ações que resultam em algo escolar — seja uma prova, uma feira, uma apresentação e etc? Só uma classe específica dessa rede me vem à mente: os professores. Seria lógico então, nesse raciocínio, considerar que os professores servem a escola, ampliando nossa rede:

Fonte: o autor, 2020. 

Nessa hierarquia os professores também necessitam de braços que possibilitem sua parte ser feita. Esses braços, como deve ser fácil a todos concluir, pertencem ao corpo discente, em outras palavras, aos alunos. 
Sendo o alunado uma massa técnica de indivíduos cujo objetivo escolar não ultrapassa a rasa função de cumprimento “estético-burocrático”, suas atividades pedagógicas em quaisquer disciplinas, inclusive nas linguagens artísticas, como música, se tornam superficiais e perdem a essência que está exatamente no desenvolvimento do pensamento crítico, analítico e reflexivo. O modelo de educação bancária, como propõe Freire (2019), nada mais permite aos estudantes do que tornarem-se depósitos de conteúdos previamente estabelecidos para eles. A educação musical, por sua vez, choca-se a esse propósito burguês no âmago de suas diretrizes que vem ganhando destaque de meados do século XX até hoje: realizar modelos de ensino artístico a partir dos saberes prévios do grupo a quem as aulas se destinam e a elas, consequentemente, tem todo o domínio dos caminhos que deve seguir. Uma vez que essa liberdade didática não lhes é dada, o ensino da arte perde sua potência singular de resistência ao modelo tradicional de ensino, tornando-se igualmente parte do mesmo sistema castrador e regulador das estruturas socioeconômicas — bem como de suas desigualdades consequentes — e quebrando possíveis expectativas nos educandos, que pouco ou nenhum valor enxergarão no fazer e educar artístico. 
A visão bancária da educação em nenhum momento entendeu o ensino de arte — seja qual for a linguagem — como processo intrínseco da educação integral e de direito universal de todo e qualquer indivíduo. Pelo contrário, a entende e manipula seus desdobramentos apenas com o intuito de manter os propósitos capitais que uma educação como produto defende. Como educadores, alinharmo-nos a essa lógica é tornar necrófila — tomando de empréstimo outro termo adotado por Freire (2019) — toda e qualquer justificativa que se possa dar para o incremento e ampliação do espaço e valorização do ensino de arte na educação básica. Se, de alguma forma, sua inserção nas escolas-banco não for minimamente subversiva à esta lógica, é possível que em pouco tempo não haja mais sequer a necessidade do showbussiness que ainda nos mantém, mesmo em tais condições, no espaço educacional privado.


Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 70 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2019.



Junior Azuos

Educador musical e pianista, graduado no curso de Licenciatura Plena em Música do Centro Universitário Fiam-Faam. Atua como educador em escolas filantrópicas e da rede privada de educação infantil e ensino fundamental. 

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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Entrelinhas #1 - A mulher dos pés descalços de Scholastique Mukasonga: um conto de fadas às avessas

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

Fonte: Editora NOS

Em primeira pessoa, a narradora-personagem nos apresenta a mola propulsora deste livro: sua mãe, Stefania, uma mulher forte que busca incansavelmente pela sobrevivência de seus filhos e cujo único desejo era que seu corpo fosse coberto por suas filhas, pois segundo a tradição daquele povo, ninguém podia ver o corpo da mãe desnudo, apenas as filhas poderiam cobri-lo. No entanto, devido ao massacre de Ruanda, a autora não pode enterrar seus mortos, tão pouco cobri-los, mas oferece as palavras de seu romance como mortalha, uma homenagem a tantas mulheres ruandesas que perpetuaram a história de seu povo porque resistiram à violência.
O romance A mulher dos pés descalços narra o cotidiano de uma família ruandesa em situação de exílio devido ao conflito entre hutus e tutsis. Com uma linguagem fluída, a autora nos apresenta a cultura daquela região. Embora o relato do massacre entre hutus e tutsis tenha rendido até prêmios no cinema, aqui esse fato chocante não é protagonista. Parafraseando um verso de canção — permita que eu fale e não as minhas cicatrizes — nesse romance a voz é dada às histórias singulares de cada mulher e não às suas dores.
A narrativa sobre mulheres e a maneira como elas se organizam e protegem suas famílias nos conduzem enquanto leitores ocidentais a um mundo muito distante: um conto de fadas às avessas, pois não tem príncipe nem final feliz. No entanto, conhecemos a fada madrinha Suzanne, que iniciava as moças à vida sexual e assegurava-lhe que estava tudo bem. Há também a bruxa má Kilimadame, empreendedora, aprendeu a fazer pão, abriu um hotel e enfeitiçava os homens. E como uma matriosca, a narrativa se revela em diversos microcontos como, por exemplo, a história de Fortunata e sua doença do amor e de Cláudia, a órfã que não arranjava marido, mas com a ajuda das mulheres conseguiu se casar.
Vale ressaltar que muitas vezes no decorrer desses microcontos, a linguagem metafórica empregada pode suscitar uma discussão muito difundida na crítica literária: o imaginário e a importância de recontar o trauma. Alguns teóricos comentam a respeito do efeito terapêutico do narrar com o intuito de construir a realidade. Especificamente a respeito do relato do trauma, Gagnebin (2009) comenta a importância do narrador e do historiador na modernidade:
O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? [...] aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo — principalmente — quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido (GAGNEBIN, 2006, p.54, grifo nosso).
Cabe então a uma das filhas de Stefania, a narradora, transmitir o inenarrável em memória aos mortos e aos anônimos que constituem a sociedade matriarcal de Ruanda. Dessa maneira, durante a narrativa sobre aquela família, também conhecemos aspectos culturais importantes dos tutsis: o inzu, o sorgo, a medicina, o pão, os casamentos bem como os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, sobretudo, as mulheres. Sendo assim, o romance traz a história não oficial ou não dominante tão importante para, entre outras finalidades, a sobrevivência da memória de um povo contada por ele mesmo.
Quanto aos papéis sociais tão bem descritos na narrativa a respeito de homens e mulheres é possível destacar uma linha de pensamento filosófico adotada pelo ocidente e que tenta resgatar África ao seu povo em diáspora: trata-se do mulherisma africana ou africana womanism. 
Segundo Cleonora Hudson-Weems, a africana womanism é centrada na família, ela é forte em conjunto com os homens, “respeitando e reconhecendo espiritualmente seus pares masculinos, respeitando os mais velhos, sendo adaptável, ambiciosa, materna e nutridora”. E, em relação aos homens negros: “as mulheres negras não percebem os homens negros como inimigos, consideram como o inimigo as forças mais amplas e opressivas da sociedade que subjugam os homens, mulheres e crianças negras”. Assim observamos no trecho a seguir: 
As reuniões do ikigo constituíram o verdadeiro parlamento das mulheres. Os homens, por sua vez, cuidavam da justiça e dos negócios de fora da comunidade; [...] As mulheres eram responsáveis pela educação, saúde, economia e assuntos matrimoniais...Cada um tinha direito de falar, pelo tempo que quisesse, sem ninguém interromper. Não havia maioria, não havia minoria. As decisões eram tomadas quando todos consentiam. (MUKASONGA, 2017, p.136). 
Ao contar sua própria história, o romance traz à tona um sentimento de identidade racial no que diz respeito ao nosso passado colonial porque em diversos trechos apresenta-se a cultura do colonizador branco em oposição à cultura local, como por exemplo, o uso de calcinhas, as religiões, os remédios. Era considerado civilizado aquele que adotava os costumes brancos e, somente as crianças batizadas tinham acesso à educação. 
Scholastique Mukasonga expõe em seu romance de maneira atenta e crítica sobre a importância da educação formal para as mulheres tutsis. A narradora descreve o ato subversivo de sua mãe, Stefania. Ela não se conforma em ver uma menina privada do direito de ir à escola, e rapidamente, por meio de uma delegação de mulheres convence o professor Bukuba a alfabetizar a criança, colocando Gloriosa — nome de batismo — na escola. 
Assim, A mulher dos pés descalços não é um relato, mas uma resposta crítica da subalternidade para o poder instituído pela força. Stefania, por meio de suas estratégias de sobrevivência e sua agência em reunir mulheres em assembleia e decidir questões importantes para sua comunidade transmite um ato revolucionário e esperançoso para quem está aberto a outros paradigmas. 

Referências

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. 

HUDSON-WEEMS, Cleonora. Africana Womanism – O outro lado da moeda. Trad. Naiana Sundjata. 2012. Disponível em: https://quilombouniapp.wordpress.com/2012/03/22/africana-womanism-o-outro-lado-da-moeda/. Acesso em: 20 mar. 2020. 

MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Nós, 2017.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram





sexta-feira, 10 de abril de 2020

O fim dos Beatles

It was fifty years ago today




Há exatos 50 anos, no dia 10 de abril de 1970, Paul McCartney anunciava durante uma entrevista o fim da maior banda de todos os tempos. Após aproximadamente 10 anos de uma história musical que estava em constante ascensão e crescimento monumental, os Beatles iriam se separar de uma vez por todas. 
Muitos foram os motivos que levaram às brigas e dissolução da banda, dentre os quais destacam-se a rivalidade e constantes desentendimentos entre os membros, principalmente entre John Lennon e Paul McCartney; o desânimo do guitarrista George Harrison por ter suas composições e contribuições constantemente descartadas; o baterista Ringo Starr que não se sentia valorizado pelos demais colegas; o relacionamento entre John e Yoko que desequilibrava a harmonia no trabalho em estúdio e as inúmeras dívidas e empreendimentos malsucedidos que faziam com que a banda perdesse quantidades absurdas de dinheiro. 
Mas será que a história do triste fim da maior banda que já existiu pode nos ensinar alguma coisa hoje, mesmo após 50 anos? 
A história dos Beatles é um exemplo de que, quando queremos e estamos dispostos a melhorar, nós entramos em uma constante evolução em todos os âmbitos de nossa vida. Ao ouvirmos o primeiro álbum, Please Please Me de 1963, não dizemos que é a mesma banda que está no álbum Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band de 1967, oitavo disco de estúdio. 
É extraordinário acompanhar os primórdios da história dos 4 meninos de Liverpool, que começaram com músicas simples (porém excepcionais) de garotos apaixonados, como She Loves You por exemplo, e passaram por um amadurecimento musical que acabou por influenciar todas as gerações de músicos até os nossos dias, com letras e arranjos complexos, que apresentam uma genialidade e originalidade únicas na história da música. 
O fim do Fab Four nos mostra que, por mais que algumas fases em nossa vida sejam extraordinárias, marcadas por experiências e realizações que não gostaríamos que acabassem, nós crescemos, evoluímos, e com isso os ciclos se encerram e tomamos caminhos diferentes. Às vezes, é melhor encerrar um ciclo no momento certo, para que tudo que foi vivido até aquele momento seja uma saudosa lembrança de dias bons, de alegrias e aprendizados, porém na certeza de que devemos caminhar sempre adiante. Pois, quando menos esperamos, nossas histórias podem mudar e tomar rumos completamente diferentes após um simples ato de atravessar a faixa de pedestres. E depois, nos resta apenas seguir em frente e “Let it be”
Que possamos viver nossa vida do mesmo modo como apreciamos um disco dos Beatles: repleto de beleza; de melodias alegres, tristes e esperançosas; de momentos maravilhosos, sabendo que mesmo após o disco ter tocado a sua última faixa tudo terá valido a pena. 

“And in the end, the love you take is equal to the love you make.” 
(Lennon/ McCartney)

Diego Rocha 

Diego de Souza Rocha é um publicitário paulista de 29 anos. Amante da arte, da filosofia, da poesia, da literatura, da música, da natureza e de toda a beleza que a vida pode proporcionar.

domingo, 29 de março de 2020

Por trás das cenas #1 - American Son

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

American Son – Netflix – 2019

Fonte: Netflix

Filme produzido pela Netflix, sob direção de Kenny Leon, narra o conflito racial entre uma mulher negra, Kendra, e a polícia. A mãe tenta saber a localização do filho Jamal que saiu de carro durante à noite e não retornara. Kendra, doutora em Psicologia e professora universitária, fora casada com Scott, um homem branco, agente do FBI. Jamal é miscigenado e passa por um “despertar” racial segundo afirma a mãe do personagem: tem cabelo trançado, usa roupas de um estilo de rua e adesivou o carro com os dizeres “Dispare em policiais”, uma mensagem subliminar de autodefesa que instrui meninos negros a tirarem fotos de ações policiais.
O filme, baseado em uma peça da Broadway, é ambientado em único espaço — a sala de espera de uma delegacia — e, há poucos personagens em cena que, em geral, aparecem em duplas em longos diálogos.
O primeiro diálogo acontece entre Kendra e o policial Paul. Desesperada, a mãe quer registrar o desaparecimento do filho e, o policial tenta a busca por uma ocorrência policial. Por diversas vezes, Kendra reafirma, por meio de uma descrição humanista, que seu filho não tem antecedentes criminais. Ela destaca as preferências de Jamal, mas não é isso que o policial busca. O agente da lei procura por nome “de guerra” ou a marca de alguma cicatriz provocada por briga.
Depois Kendra discute com Scott, pai de Jamal. Ela o repreende por sua linguagem de “gueto” e nota que em poucos minutos o policial passou as informações a ele, homem e branco. O ex-casal discute sobre suas diferenças raciais e sobre como o filho se sente “a cara da raça” na escola particular que o matricularam. A despeito destas diferenças, ambos acreditaram em uma educação de qualidade que colocaria Jamal a salvo de uma sociedade outrora segregada. Doutora em Psicologia, Kendra não ficou a salvo da discriminação racial, mas acreditou, conforme acusa o tenente Stokes, em um sonho americano.
Um “sonho americano” foi o que Scott tentou oferecer ao filho Jamal. Em um terceiro momento, O ex-marido branco discute com Kendra, seu discurso a deslegitima enquanto mulher, mãe e negra ao defender que as questões raciais não devem ser expostas, pois traz um desconforto aos brancos. Pra ele, Jamal não deve trançar cabelo e nem falar feito um “mano de rua”: — "Ele faz parte do meu mundo, não do seu", diz Scott a Kendra. Ao ser confrontado seja pelas circunstâncias, seja pela ex esposa, Scott é obrigado a enfrentar as diferenças raciais presentes entre ele e o filho Jamal. 
A maternidade negra é discutida em cena. Kendra não dorme, como a maioria das mães, no entanto, ela tem preocupações exclusivas: o filho é maior de idade e decide viajar para o sul do país com outros amigos. Segundo bell hooks, em sua obra Olhares negros, raça e representação, “viajar” é o espaço da branquitude: “[...] viajar é se deparar com a força aterrorizante da supremacia branca”. Kendra se aterroriza pelo futuro do filho porque sabe que o sul de seu país carrega uma marca segregacionista. 
A cena descrita por Kendra — o filho negro se interessa por uma moça branca na lanchonete e outro rapaz branco o ataca por isso — põe em debate um fato bastante comum no passado: os linchamentos de homens negros suspeitos de estupro. A imagem do homem negro enquanto estuprador em potencial foi forjada pós Guerra Civil, conforme afirma Angela Davis, em Mulheres, raça e classe: “A instituição do linchamento, por sua vez, tornou- se um elemento de terror racista do pós guerra” (p.189). Logo, o medo de Kendra se justifica em um passado histórico americano que pressupunha a culpa do homem negro. Desde que o filho nasce, as noites de sono das mães não são as mesmas — afirma o senso comum — no entanto, as preocupações das mães negras são singulares, pois se baseiam no racismo construído primeiramente com a escravização e, depois, com a segregação instituída pelas leis Jim Crow que não permitiram, por exemplo, as relações afetivas inter-raciais.
Dessa maneira, American Son é um filme que retrata os conflitos raciais tão literalmente que torna, infelizmente, óbvio seu desfecho trágico. Embora algumas diferenças históricas possam distanciar a análise de tais conflitos no contexto brasileiro, esta produção Netflix pode ser bastante didática em suscitar um debate saudável culminando no ensino afirmativo das culturas de identidade negra.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram