domingo, 14 de junho de 2020

Trabalho dos sonhos*

Que pesadelo mais sombrio! 
Estava num amplo galpão fabril, mal iluminado, repleto de camas hospitalares. As camas estavam ocupadas e dispostas em fileiras, como numa grande linha de produção. As pessoas que as ocupavam, aparentemente saudáveis, tinham conectados às suas cabeças eletrodos cujas extremidades encontravam-se conectadas a uma máquina semelhante a um computador. Máquinas, fios, pessoas e camas hospitalares repetiam-se sequencial e infinitamente compondo um cenário de ficção científica. Ao soar de um sinal, as luzes se acenderam. Paulatinamente, as pessoas que ocupavam as camas começaram a se levantar e a desconectar os fios que as prendiam às máquinas. 
— Quinze minutos para o café! 
Todos pareciam estar muito bem. Enquanto comiam, conversavam sobre os mais diversos assuntos: família, política, religião, economia, saúde, educação, a viagem das últimas férias... 
O sinal tocou novamente indicando o término do café. Todos retornaram aos seus lugares, dando continuidade às suas tarefas. Caminhando entre as camas observei que as telas das máquinas exibiam paisagens belíssimas — como se fosse possível apresentar em imagem a própria felicidade. Recordei-me de um texto de Bauman que denunciava o caráter parasitário do capitalismo, e então me dei conta de que todas aquelas pessoas estavam sonhando. Seus sonhos eram captados por meio dos eletrodos e transferidos para as máquinas. De lá seriam vendidos por um custo altíssimo a uma pequena parcela da sociedade que, diante de uma crise sanitária de proporções globais, se via incapaz de sonhar. Tentei chorar e não consegui. Gritei a plenos pulmões, mas meus lábios eram incapazes de projetar qualquer som. 
— Álvaro! Álvaro! 
— O que foi? 
— Você estava longe, meu amigo. A pausa acabou. Temos ainda muitos sonhos a produzir. Volte ao trabalho! 
Liguei a máquina. Reconectei os eletrodos em minha cabeça. Deitei na cama...

*Texto publicado originalmente no segundo volume da Revista Habitat - Artefato Edições

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O que podemos aprender com Heráclito de Éfeso

Filósofo pré-socrático, viveu entre 540 e 480 a.C. 
Como os demais filósofos do mesmo período, Heráclito estava interessado em compreender a origem de todas as coisas e a dinâmica da natureza a partir dela mesma, sem precisar recorrer aos antigos mitos ancestrais. 
Para Heráclito, as constantes transformações que ocorrem no mundo natural são a sua característica mais fundamental. Para ele “Tudo Flui” e “Nada é permanente, exceto a mudança”, tanto que é impossível “banhar-se duas vezes no mesmo rio” pois, quando mergulho no rio pela segunda vez, não sou mais a mesma pessoa e nem o rio o mesmo rio. Heráclito também aponta que o mundo está repleto de contradições ou pares de opostos. Se jamais ficássemos doentes, não saberíamos o sentido de gozar de boa saúde. Se jamais houvesse guerra, nunca daríamos valor a paz. “Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz”. Esse Deus por ele mencionado é uma razão universal, é essa natureza cheia de contradições. O termo utilizado por ele constantemente é logos, que quer dizer “razão”. Parece um tanto pessimista a filosofia de Heráclito quando observamos sua fugacidade, mas acredito ser muito mais prejudicial não compreendermos as transformações e as mudanças a que estamos sujeitos enquanto seres viventes nesse mundo em constante movimentação. 
Essa é uma síntese da filosofia de Heráclito. Se você curtiu, pesquise mais sobre o filósofo. No fim do texto vou deixar indicação de leitura. 
Certo. Vamos deixar isso mais legal e usar o conceito apresentado para refletirmos sobre nossas vidas. 
Estamos acostumados a lidar com a vida como se algumas coisas fossem estáticas ou como se pudéssemos controlar as mudanças que nela ocorrem. É compreensível: afinal de contas fazemos planos, tomamos decisões a médio e a longo prazos, precisamos de uma certa estabilidade. Parece ser impossível manipular tanta “fluidez” assim. A ideia de mudança é muito mais aceitável quando a vinculamos a algo que aceitamos ou queremos que mude. No entanto, sempre existe uma parte de nossas vidas sobre a qual não pensamos, não aceitamos ou não queremos que se altere de alguma forma, principalmente de formas inesperadas. Esquecemos que o mundo possui uma outra dinâmica, as coisas acontecem e nos atravessam sem a nossa permissão e quando percebemos tudo mudou. Fazendo uso do conceito apresentado por Heráclito, precisamos considerar a natureza em seu próprio devir (tornar-se, vir-a- ser) que não nos consulta previamente. O logos da natureza ou do mundo que muitas vezes desconhecemos não está em nosso domínio. Quando a mudança se apresenta precisamos, de alguma forma, lidar com ela. As perguntas são: como você lida com as transformações do mundo? Para você é tranquilo? Consegue identificar suas formas de lidar com as mudanças? Você é mais flexível ou menos flexível para mudanças? 
Não tem certo, nem errado: há apenas as suas reflexões acerca do seu modo de ser e de perceber as transformações do mundo que lhe cerca. 

Indicação de leitura: Os Pré-Socráticos - Vida e Obra. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.