terça-feira, 14 de julho de 2020

Dentro da noite, dentro de mim

É à noite, enquanto a maioria dorme, que algo em mim desperta
Tantas coisas que pensei e queria compartilhar com o mundo
Das piores noites nasceram as coisas mais bonitas e mais tristes
Há tanta beleza na tristeza...
Acho que o inverso cria o verso...
Amores, ideias, medos, culpas, culpas, culpas...
Sempre tão juntos...
Sempre me molhando o rosto, me secando a alma... 
E paradoxalmente regando meu novo ser
Amores trazendo meus maiores medos
As culpas que assumi pra mim que nem eram minhas...
E novamente me culpo de novo por já ter me culpado
Os ideais, eu claramente sei que não fui eu que criei.
Vou responsabiliza-los por tudo...
A bebida foi a coisa mais útil, temporariamente mais útil pra fugir daqui
Mas quando voltava... Queria estar bêbada de novo...
De vez em quando me olhava no espelho e me perguntava: onde eu estava?
E agora estou aqui...
Um pouco mais lúcida, desfazendo ideais, desfazendo culpas, tentando me encontrar e me aceitar
Os medos... Não foi o pior de tudo...
Quantas pessoas sofrendo pelo mesmos motivos?
Um passo atrás do que aqui me encontro.
Lembrem-se: O inverso faz o verso
Dois lados de tudo
Fecho a porta, fecho a janela, fecho a boca e os ouvidos
Dentro de mim
Todos os meus encontros já vividos
Eu não posso me sufocar aqui dentro
Não posso me trancar...
Preciso me reescrever
O contato com o mundo me adoece e me cura
Escuto aquilo que me disse...
Lembra?
Como posso me achar só.
O que muda aqui dentro é sutil e ao mesmo tempo tão imenso...
Quem ou o quê encontrarei quando eu sair, não sei,
Mas se preparem para me encontrar...

Vanuza Alves

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Diário de Simone*

Já não basta a dificuldade de acordar mulher todos os dias em nossa sociedade, agora temos de acordar mulher em meio a uma pandemia. Nossa rotina já é pesada, agora então, parece que Sísifo não está tão sozinho assim. Talvez você esteja me achando dramática — talvez eu seja mesmo — mas é bem provável que no fim dessas linhas você assuma que na verdade não iria querer trocar de pele comigo ou com qualquer outra mulher e, sendo bem sincera, a minha vida perto da vida de algumas mulheres que conheço é muito, muito tranquila e privilegiada.
“Bom dia” me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café. Minha casa não se recuperou da noite passada, eu não me recuperei da noite passada. Pia tem louça, sofá tem roupa, livros no sofá, no rack, no chão, a gata... A gata precisa de comida, mas antes deixa eu ver meu filho. Saio da cama e acalmo meu coração vendo sua respiração, ele ainda dorme. Verifico sua temperatura, não parece doente e eu recebo como mágica um golpe de energia para descer as escadas. Ignore a bagunça: você não vai dar conta mesmo! Preciso passar o aspirador quando voltar. Tempo curto, muitas coisas, preciso me arrumar... O café! Mas, antes, a gata! Sentada no sofá verifico os noticiários. Coronavírus e suas derivações, em minha cabeça muitas reflexões: como vamos fazer com as favelas? Como estão meus alunos? Céus! E os moradores em situação de rua? Teve festa na rua de baixo. Tem muitos funcionários doentes no hospital — você não sabe ainda, trabalho em hospital — tem muita gente nas ruas preciso passar no mercado tenho dois atendimentos hoje preciso escrever aquele texto esqueci de responder a mensagem do Carlos preciso ler aquele texto do Adorno e aquele outro da Arendt como eu odeio esse presidente! Nossa... olha a hora! 
Saio de casa, queria mesmo era ficar. Minha irmã está de home office, minha mãe sempre trabalhou em casa, minha sobrinha e meu filho estão com os estudos a distância — ainda bem! Coração segue menos aflito.
— Tchau, Mãe!
— Tchau, Simone!
Sinto um pesar na sua despedida, é sempre assim. Ela teme e eu temo também, ambas fingimos que não. É próprio da mulher fingir que está tudo bem para poder continuar. Há de continuar, há de se manter. Muitas mulheres são assim, tivemos que nos construir dessa forma. Não é a primeira vez que saio de casa com medo, não é a primeira vez que minha mãe fica em casa com medo. Lidamos diariamente com ele, descansamos pouco do medo. As mulheres temem por suas vidas todos os dias e naturalizar isso também é um tipo de doença. 
A chegada ao hospital é tensa: você já entra pensando em como se proteger, mas como? Se falta EPI? Não tem para todos. Vamos pensar nos que precisam mais! Quem precisa mais? Quem lida com os pacientes, claro! Certo, mas a contaminação já é comunitária, o que significa que os profissionais podem passar uns para os outros... Vamos de “uni duni tê”?
Ao caminhar pelos corredores você se depara com diferentes profissionais, não é tão simples descobrir em qual setor aquele profissional trabalha ou de qual setor ele acabou de sair ou passar. O que ele estava fazendo antes de estar aqui? Pode estar infectado? O vírus não impôs apenas o distanciamento social, impôs uma sombra de desconfiança. Um vulto de doença em cada um que se aproxima. Nós mulheres também já estamos acostumadas com isso. Como você acha que é andar em uma rua escura e ouvir passos atrás de você ou quando você pede um carro por aplicativo? Até mesmo quando você vai conhecer alguém pela primeira vez, será que ele é um estuprador? O vulto da violência está em todos os homens até que se prove o contrário. Enfim, cruzo o primeiro corredor e nesse momento começo a sentir meu corpo um pouco mais rígido. Bem vinda, tensão! 
Ufa, cheguei segura ao meu setor... só que não! “Simone, tem aquele processo para entregar”. “Simone, fulano não veio”. “Simone, falta álcool”. “Simone, precisa ver a escala”. “O material para o paciente João não veio”. “O faturamento está atrasado”. "O Papa te ligou duas vezes”. “Cinderela! Cinderela! Cinderela...” Ops, volta! Desculpa, me empolguei. Lava as mãos primeiro e coloca sua máscara — é o que o bom senso diz e obedeço. Devido ao estado de pandemia adotamos algumas medidas protetivas, uma delas foi a redução do horário de trabalho. Lembro como se fosse ontem o apoio da chefia: “Até podemos reduzir, mas saiba que nada de errado pode acontecer, se não...". Nesses momentos, o acolhimento é o que conta, não acham? Afinal de contas, o que conta mesmo é a Mais-valia. A pandemia fez a gentileza de desvelar muitas coisas: ela desnudou tudo e todos, desde o sistema neoliberal e o quanto ele não se sustenta em toda sua mesquinharia até seu vizinho que limpou as prateleiras do supermercado. Não é mais necessário tanto esforço para ver quem as pessoas são. Foi mais ou menos como no período das eleições presidenciais, mas agora a rima é outra: vida X economia. Não, espere! A rima continua sendo a mesma: “Dinheiro: precisamos salvar. As vidas? Só se tempo sobrar!”
O setor em que trabalho é frequentado por muitos médicos. Vários desses profissionais estão bem cientes dos riscos que o novo vírus oferece, porém alguns estão confiantes que nada os atingirá e estão tão seguros que acreditam que também nada acontecerá com o restante da população, apesar de tratarem da população doente. Uma postura que me faz pensar como se deu esse processo um tanto alienante e alienador, tornando-os cada vez mais afastados de si mesmos e dos outros. Esses dias, trabalhando tranquilamente em minha sala, um dos residentes me procura para tirar uma dúvida, como faz de forma habitual. Se aproximou e muito de mim, o que não havia nenhuma necessidade, então pedi para que cumprisse o protocolo de distanciamento. Além de não ser atendida, fui surpreendida com um abraço forçado. Pois é! Ele me abraçou à força porque eu pedi para que ele respeitasse o protocolo que ele já deveria estar respeitando. A pandemia nos proporcionou uma nova modalidade de abuso: aquele que tenta te transmitir um vírus porque você reclamou do distanciamento — coitada da pandemia, não merece levar a culpa por estar de saia curta, nesse caso, por ele ser um abusador em potencial. Fui obrigada a empurrá-lo. Deveria ter feito mais, mas não fiz. Como a maioria dos homens, ele acredita que pode e está acostumado a poder e, pior, está acostumado a sair ileso de situações como essa porque nós mulheres, apesar de sabermos o que fazer na hora do abuso, de alguma forma, ficamos sem reação. Ele é médico, homem, classe média alta. Tudo isso conta muito no local onde trabalho. Qualquer reclamação que eu fizesse não daria em absolutamente em nada. Resolvi recolher minha cara e meu ódio do chão. Claro que eu sei que em uma escala de abusos esse não é dos piores, mas estamos falando aqui da violação da minha integridade, da minha vontade e do meu direito de não ser tocada — esse corpo aqui é meu, senhor! Hei! Hei! Hei! Do meu direito de ter minha saúde preservada. Mas, sabe o que é ainda pior? É termos uma escala para abusos. Pergunto-me se ele também abraça homens à força. Essa situação me fez lembrar do caso da médica Lorena Quaranta, que foi assassinada pelo enfermeiro e seu namorado Antonio De Pace. A justificativa de Antonio pela morte de Lorena foi ela ter passado o vírus covid-19 para ele. Ambos trabalhavam no mesmo hospital na Sicília, Itália. O mais suspeito é que os testes resultaram negativo para o vírus em ambos. Isso monstra como é fácil para os homens descontar sua raiva, seu descontentamento, sua ira sobre as mulheres. Como seu desiquilíbrio é direcionado para nós. Em contrapartida nós, mulheres, na grande maioria, adotamos uma postura de passividade frente aos homens. Somos culpadas pelas roupas que usamos, pelo horário em que saímos, se bebemos, se lutamos. A verdade é que nos culpam porque somos mulheres.
Hora de voltar pra casa, acabou... a metade do dia. 
Chegar em casa, deixar tudo no carro: tire os sapatos dentro do veículo, vá direto para a lavanderia, lave bem as mãos, tire as roupas e coloque-as em um saco, passe álcool em gel, vá direto para o chuveiro e não toque em nada! 
Em minha casa tenho 3 pessoas do grupo de risco: minha irmã finalizou recentemente o tratamento de câncer de mama, é hipertensa e diabética. Minha sobrinha é imunodeficiente, não produz anticorpos suficientes. Minha mãe tem 65 e possui habilidades de subir em telhados. Banho... Tento liberar a musculatura, começo a listar as tarefas mentalmente. Tensão, não foi embora ainda? 
Morta de fome. Vou comer qualquer coisa, bom senso não deixa. Precisamos reforçar a imunidade. Cozinha, lava, seca, guarda, limpa, aspira, respira, não pira. Tem cerveja? Não tem, só vinho. Serve? Não posso, vou atender — vocês não sabem, mas também sou terapeuta, segunda profissão. Para nós, mulheres, é muito comum o acúmulo de atividades. Historicamente muitas coisas são colocadas nos nossos ombros: casa, filhos, maridos, trabalhos — alguns até são remunerados, mal remunerados. Lembrei da Dona Cleonice, a empregada doméstica, uma das primeiras vítimas do Coronavírus no Rio de Janeiro. Contraiu o vírus na casa onde trabalhava de segunda a sexta. Sua empregadora retornou infectada da Itália e achou que era certo não dispensar seus empregados. Dona Cleonice era hipertensa e diabética. Seu nome não foi mencionado nas primeiras reportagens, era tratada apenas como "doméstica". Em uma sociedade que nos separa por classes e por objetos a serem usados, o que basta mesmo é saber quanto você vale. E uma empregada doméstica? Vale quanto? Seu nome era CLEONICE GONÇALVES, tinha 63 anos. 
Os atendimentos estão girando em torno da pandemia, todos estão girando em torno da pandemia. Ela nos consome e nós a consumimos, mas não tenho tempo de ser consumida: preciso verificar as lições do filho. 
— Como foi a aula, Murilo? 
— Bem, mãe! 
— Fez as atividades? 
— Sim mãe, você fez comigo. Esqueceu? 
— Sim filho, esqueci! 
Descansar. Vou ler, vou escrever aquele texto, vou planejar aquele grupo, responder aquela mensagem, quer um suco, filho? Vou ver um filme, nossa... olha a hora! 
“Bom dia”, me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café.

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub.