segunda-feira, 20 de abril de 2020

Entrelinhas #1 - A mulher dos pés descalços de Scholastique Mukasonga: um conto de fadas às avessas

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

Fonte: Editora NOS

Em primeira pessoa, a narradora-personagem nos apresenta a mola propulsora deste livro: sua mãe, Stefania, uma mulher forte que busca incansavelmente pela sobrevivência de seus filhos e cujo único desejo era que seu corpo fosse coberto por suas filhas, pois segundo a tradição daquele povo, ninguém podia ver o corpo da mãe desnudo, apenas as filhas poderiam cobri-lo. No entanto, devido ao massacre de Ruanda, a autora não pode enterrar seus mortos, tão pouco cobri-los, mas oferece as palavras de seu romance como mortalha, uma homenagem a tantas mulheres ruandesas que perpetuaram a história de seu povo porque resistiram à violência.
O romance A mulher dos pés descalços narra o cotidiano de uma família ruandesa em situação de exílio devido ao conflito entre hutus e tutsis. Com uma linguagem fluída, a autora nos apresenta a cultura daquela região. Embora o relato do massacre entre hutus e tutsis tenha rendido até prêmios no cinema, aqui esse fato chocante não é protagonista. Parafraseando um verso de canção — permita que eu fale e não as minhas cicatrizes — nesse romance a voz é dada às histórias singulares de cada mulher e não às suas dores.
A narrativa sobre mulheres e a maneira como elas se organizam e protegem suas famílias nos conduzem enquanto leitores ocidentais a um mundo muito distante: um conto de fadas às avessas, pois não tem príncipe nem final feliz. No entanto, conhecemos a fada madrinha Suzanne, que iniciava as moças à vida sexual e assegurava-lhe que estava tudo bem. Há também a bruxa má Kilimadame, empreendedora, aprendeu a fazer pão, abriu um hotel e enfeitiçava os homens. E como uma matriosca, a narrativa se revela em diversos microcontos como, por exemplo, a história de Fortunata e sua doença do amor e de Cláudia, a órfã que não arranjava marido, mas com a ajuda das mulheres conseguiu se casar.
Vale ressaltar que muitas vezes no decorrer desses microcontos, a linguagem metafórica empregada pode suscitar uma discussão muito difundida na crítica literária: o imaginário e a importância de recontar o trauma. Alguns teóricos comentam a respeito do efeito terapêutico do narrar com o intuito de construir a realidade. Especificamente a respeito do relato do trauma, Gagnebin (2009) comenta a importância do narrador e do historiador na modernidade:
O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? [...] aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo — principalmente — quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido (GAGNEBIN, 2006, p.54, grifo nosso).
Cabe então a uma das filhas de Stefania, a narradora, transmitir o inenarrável em memória aos mortos e aos anônimos que constituem a sociedade matriarcal de Ruanda. Dessa maneira, durante a narrativa sobre aquela família, também conhecemos aspectos culturais importantes dos tutsis: o inzu, o sorgo, a medicina, o pão, os casamentos bem como os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, sobretudo, as mulheres. Sendo assim, o romance traz a história não oficial ou não dominante tão importante para, entre outras finalidades, a sobrevivência da memória de um povo contada por ele mesmo.
Quanto aos papéis sociais tão bem descritos na narrativa a respeito de homens e mulheres é possível destacar uma linha de pensamento filosófico adotada pelo ocidente e que tenta resgatar África ao seu povo em diáspora: trata-se do mulherisma africana ou africana womanism. 
Segundo Cleonora Hudson-Weems, a africana womanism é centrada na família, ela é forte em conjunto com os homens, “respeitando e reconhecendo espiritualmente seus pares masculinos, respeitando os mais velhos, sendo adaptável, ambiciosa, materna e nutridora”. E, em relação aos homens negros: “as mulheres negras não percebem os homens negros como inimigos, consideram como o inimigo as forças mais amplas e opressivas da sociedade que subjugam os homens, mulheres e crianças negras”. Assim observamos no trecho a seguir: 
As reuniões do ikigo constituíram o verdadeiro parlamento das mulheres. Os homens, por sua vez, cuidavam da justiça e dos negócios de fora da comunidade; [...] As mulheres eram responsáveis pela educação, saúde, economia e assuntos matrimoniais...Cada um tinha direito de falar, pelo tempo que quisesse, sem ninguém interromper. Não havia maioria, não havia minoria. As decisões eram tomadas quando todos consentiam. (MUKASONGA, 2017, p.136). 
Ao contar sua própria história, o romance traz à tona um sentimento de identidade racial no que diz respeito ao nosso passado colonial porque em diversos trechos apresenta-se a cultura do colonizador branco em oposição à cultura local, como por exemplo, o uso de calcinhas, as religiões, os remédios. Era considerado civilizado aquele que adotava os costumes brancos e, somente as crianças batizadas tinham acesso à educação. 
Scholastique Mukasonga expõe em seu romance de maneira atenta e crítica sobre a importância da educação formal para as mulheres tutsis. A narradora descreve o ato subversivo de sua mãe, Stefania. Ela não se conforma em ver uma menina privada do direito de ir à escola, e rapidamente, por meio de uma delegação de mulheres convence o professor Bukuba a alfabetizar a criança, colocando Gloriosa — nome de batismo — na escola. 
Assim, A mulher dos pés descalços não é um relato, mas uma resposta crítica da subalternidade para o poder instituído pela força. Stefania, por meio de suas estratégias de sobrevivência e sua agência em reunir mulheres em assembleia e decidir questões importantes para sua comunidade transmite um ato revolucionário e esperançoso para quem está aberto a outros paradigmas. 

Referências

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. 

HUDSON-WEEMS, Cleonora. Africana Womanism – O outro lado da moeda. Trad. Naiana Sundjata. 2012. Disponível em: https://quilombouniapp.wordpress.com/2012/03/22/africana-womanism-o-outro-lado-da-moeda/. Acesso em: 20 mar. 2020. 

MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Nós, 2017.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram





sexta-feira, 10 de abril de 2020

O fim dos Beatles

It was fifty years ago today




Há exatos 50 anos, no dia 10 de abril de 1970, Paul McCartney anunciava durante uma entrevista o fim da maior banda de todos os tempos. Após aproximadamente 10 anos de uma história musical que estava em constante ascensão e crescimento monumental, os Beatles iriam se separar de uma vez por todas. 
Muitos foram os motivos que levaram às brigas e dissolução da banda, dentre os quais destacam-se a rivalidade e constantes desentendimentos entre os membros, principalmente entre John Lennon e Paul McCartney; o desânimo do guitarrista George Harrison por ter suas composições e contribuições constantemente descartadas; o baterista Ringo Starr que não se sentia valorizado pelos demais colegas; o relacionamento entre John e Yoko que desequilibrava a harmonia no trabalho em estúdio e as inúmeras dívidas e empreendimentos malsucedidos que faziam com que a banda perdesse quantidades absurdas de dinheiro. 
Mas será que a história do triste fim da maior banda que já existiu pode nos ensinar alguma coisa hoje, mesmo após 50 anos? 
A história dos Beatles é um exemplo de que, quando queremos e estamos dispostos a melhorar, nós entramos em uma constante evolução em todos os âmbitos de nossa vida. Ao ouvirmos o primeiro álbum, Please Please Me de 1963, não dizemos que é a mesma banda que está no álbum Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band de 1967, oitavo disco de estúdio. 
É extraordinário acompanhar os primórdios da história dos 4 meninos de Liverpool, que começaram com músicas simples (porém excepcionais) de garotos apaixonados, como She Loves You por exemplo, e passaram por um amadurecimento musical que acabou por influenciar todas as gerações de músicos até os nossos dias, com letras e arranjos complexos, que apresentam uma genialidade e originalidade únicas na história da música. 
O fim do Fab Four nos mostra que, por mais que algumas fases em nossa vida sejam extraordinárias, marcadas por experiências e realizações que não gostaríamos que acabassem, nós crescemos, evoluímos, e com isso os ciclos se encerram e tomamos caminhos diferentes. Às vezes, é melhor encerrar um ciclo no momento certo, para que tudo que foi vivido até aquele momento seja uma saudosa lembrança de dias bons, de alegrias e aprendizados, porém na certeza de que devemos caminhar sempre adiante. Pois, quando menos esperamos, nossas histórias podem mudar e tomar rumos completamente diferentes após um simples ato de atravessar a faixa de pedestres. E depois, nos resta apenas seguir em frente e “Let it be”
Que possamos viver nossa vida do mesmo modo como apreciamos um disco dos Beatles: repleto de beleza; de melodias alegres, tristes e esperançosas; de momentos maravilhosos, sabendo que mesmo após o disco ter tocado a sua última faixa tudo terá valido a pena. 

“And in the end, the love you take is equal to the love you make.” 
(Lennon/ McCartney)

Diego Rocha 

Diego de Souza Rocha é um publicitário paulista de 29 anos. Amante da arte, da filosofia, da poesia, da literatura, da música, da natureza e de toda a beleza que a vida pode proporcionar.