domingo, 29 de março de 2020

Por trás das cenas #1 - American Son

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

American Son – Netflix – 2019

Fonte: Netflix

Filme produzido pela Netflix, sob direção de Kenny Leon, narra o conflito racial entre uma mulher negra, Kendra, e a polícia. A mãe tenta saber a localização do filho Jamal que saiu de carro durante à noite e não retornara. Kendra, doutora em Psicologia e professora universitária, fora casada com Scott, um homem branco, agente do FBI. Jamal é miscigenado e passa por um “despertar” racial segundo afirma a mãe do personagem: tem cabelo trançado, usa roupas de um estilo de rua e adesivou o carro com os dizeres “Dispare em policiais”, uma mensagem subliminar de autodefesa que instrui meninos negros a tirarem fotos de ações policiais.
O filme, baseado em uma peça da Broadway, é ambientado em único espaço — a sala de espera de uma delegacia — e, há poucos personagens em cena que, em geral, aparecem em duplas em longos diálogos.
O primeiro diálogo acontece entre Kendra e o policial Paul. Desesperada, a mãe quer registrar o desaparecimento do filho e, o policial tenta a busca por uma ocorrência policial. Por diversas vezes, Kendra reafirma, por meio de uma descrição humanista, que seu filho não tem antecedentes criminais. Ela destaca as preferências de Jamal, mas não é isso que o policial busca. O agente da lei procura por nome “de guerra” ou a marca de alguma cicatriz provocada por briga.
Depois Kendra discute com Scott, pai de Jamal. Ela o repreende por sua linguagem de “gueto” e nota que em poucos minutos o policial passou as informações a ele, homem e branco. O ex-casal discute sobre suas diferenças raciais e sobre como o filho se sente “a cara da raça” na escola particular que o matricularam. A despeito destas diferenças, ambos acreditaram em uma educação de qualidade que colocaria Jamal a salvo de uma sociedade outrora segregada. Doutora em Psicologia, Kendra não ficou a salvo da discriminação racial, mas acreditou, conforme acusa o tenente Stokes, em um sonho americano.
Um “sonho americano” foi o que Scott tentou oferecer ao filho Jamal. Em um terceiro momento, O ex-marido branco discute com Kendra, seu discurso a deslegitima enquanto mulher, mãe e negra ao defender que as questões raciais não devem ser expostas, pois traz um desconforto aos brancos. Pra ele, Jamal não deve trançar cabelo e nem falar feito um “mano de rua”: — "Ele faz parte do meu mundo, não do seu", diz Scott a Kendra. Ao ser confrontado seja pelas circunstâncias, seja pela ex esposa, Scott é obrigado a enfrentar as diferenças raciais presentes entre ele e o filho Jamal. 
A maternidade negra é discutida em cena. Kendra não dorme, como a maioria das mães, no entanto, ela tem preocupações exclusivas: o filho é maior de idade e decide viajar para o sul do país com outros amigos. Segundo bell hooks, em sua obra Olhares negros, raça e representação, “viajar” é o espaço da branquitude: “[...] viajar é se deparar com a força aterrorizante da supremacia branca”. Kendra se aterroriza pelo futuro do filho porque sabe que o sul de seu país carrega uma marca segregacionista. 
A cena descrita por Kendra — o filho negro se interessa por uma moça branca na lanchonete e outro rapaz branco o ataca por isso — põe em debate um fato bastante comum no passado: os linchamentos de homens negros suspeitos de estupro. A imagem do homem negro enquanto estuprador em potencial foi forjada pós Guerra Civil, conforme afirma Angela Davis, em Mulheres, raça e classe: “A instituição do linchamento, por sua vez, tornou- se um elemento de terror racista do pós guerra” (p.189). Logo, o medo de Kendra se justifica em um passado histórico americano que pressupunha a culpa do homem negro. Desde que o filho nasce, as noites de sono das mães não são as mesmas — afirma o senso comum — no entanto, as preocupações das mães negras são singulares, pois se baseiam no racismo construído primeiramente com a escravização e, depois, com a segregação instituída pelas leis Jim Crow que não permitiram, por exemplo, as relações afetivas inter-raciais.
Dessa maneira, American Son é um filme que retrata os conflitos raciais tão literalmente que torna, infelizmente, óbvio seu desfecho trágico. Embora algumas diferenças históricas possam distanciar a análise de tais conflitos no contexto brasileiro, esta produção Netflix pode ser bastante didática em suscitar um debate saudável culminando no ensino afirmativo das culturas de identidade negra.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram