quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

O silêncio nos conduzirá à bancarrota*

Desde que ingressei na rede pública estadual de educação como professor em regime de contratação temporária, há 12 anos, convivo com o temor de que em algum momento não haverá espaço para a Filosofia na educação básica. Portanto, logo no início da carreira, fui orientado por diretores de escola e colegas professores a cursar outra graduação para ter uma carta na manga no momento em que a ameaça se consolidar. Durante algum tempo, a estratégia do governo do estado de São Paulo foi a de fechar salas de aula no período noturno reduzindo, a um tempo, a quantidade de turmas e a jornada de trabalho dos professores. Essa medida foi incrementada com a expansão do Programa Ensino Integral (PEI) e, posteriormente, com as reformas curriculares dos últimos anos: arbitrariedades fantasiadas de legalidade. 

A implementação da etapa Ensino Médio da Base Nacional Comum Curricular impôs aos estados a tarefa de reorganizar os currículos. Progressivamente, o Currículo Paulista substituiu o Currículo do Estado de São Paulo: Ciências Humanas e suas Tecnologias, e as disciplinas que eram ofertadas apenas no âmbito do PEI passaram a compor as grades curriculares de todas as escolas estaduais, reduzindo o já parco espaço que a Filosofia dispunha. Parece que acompanhamos essa movimentação como se ela nada tivesse a ver conosco. Preferimos discutir alternativas para ensinar Filosofia nas brechas curriculares que nos restaram: inventar uma disciplina eletiva de cunho filosófico; assumir a disciplina de Projeto de Vida e discutir os temas que a ela concernem a partir da perspectiva filosófica; acrescentar aos itinerários formativos desvios e atalhos filosóficos. Em síntese, alegramo-nos com o mínimo, e isso foi suficiente para abandonarmos a trincheira da garantia institucional do ensino de Filosofia na educação básica. 

Há pouco celebramos o aumento do número de questões de Filosofia na última edição do Enem. E essa parca vitória desviou nossa atenção das próximas alterações curriculares que enfrentaremos em 2025, tendo em vista a aprovação da Lei n.º 14.945/24: na unidade escolar onde atuo, a Filosofia será ofertada apenas para a primeira série do ensino médio, no período vespertino; as turmas de segunda série do ensino médio, do período noturno, terão aula de Filosofia e Sociedade Moderna – uma pseudodisciplina que será oferecida a distância, no contraturno, e da qual não se sabe o conteúdo, já que caberá ao professor e à professora o papel de mediação que se resumirá ao acompanhamento da realização das tarefas pelos alunos. Não haverá Filosofia para as turmas da terceira série do período noturno. A tática de terra arrasada parece ter sido executada com maestria: a ameaça supramencionada enfim se concretizou. O que nos resta? Vislumbro apenas duas alternativas: (i) nós, que nos habituamos a filosofar nas brechas, teremos que aprender a filosofar sob escombros – a velha estratégia da adaptação, do currículo oculto, que já se mostrou ineficaz; (ii) unir esforços e erguer uma barricada para defender, de maneira aguerrida, a permanência do ensino de Filosofia na educação básica. Eu escolho a segunda opção e conclamo os filósofos e filósofas que atuam na linha de frente na educação básica a fazerem o mesmo. Do contrário, o silêncio nos conduzirá à bancarrota. 

*Texto publicado originalmente na Coluna Anpof


segunda-feira, 13 de maio de 2024

Limbo racial

Há tempos tento decidir qual a melhor forma de partilhar as impressões em relação aos últimos eventos que ocorreram em minha vida. Apesar de considerar que ainda não encontrei a fórmula ideal, senti-me inspirado a escrever, e decidi produzir algo antes que a inspiração me abandonasse novamente e a proposta de reflexão se perdesse por completo.

Em termos deleuzianos, a experiência com determinado acontecimento é e sempre será particular, pessoal e intransferível. Entretanto, alguns aspectos desse acontecimento são generalizáveis, o que justifica a nossa identificação com determinadas histórias: dada a singularidade de cada pessoa, somos incapazes de experimentar exatamente o que o outro experimenta, mas há algo na experiência alheia que se repete em outras experiências e em minhas experiências. Talvez seja esta a fórmula da empatia.

Em 2020 atuava como professor em uma escola adepta às diretrizes do Programa Ensino Integral (PEI). Fui aprovado no processo seletivo do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (PPGESIA/Unifesp), no qual pretendia desenvolver uma pesquisa voltada à saúde mental dos meus alunos. 

Embora o imperativo da virtualidade incidisse sobre mais de 90% das atividades cotidianas de qualquer pessoa como medida para evitar a propagação do novo Coronavírus, o diretor da unidade escolar, um homem branco, não mediu esforços para encontrar subterfúgios que me fizessem desistir da pós-graduação. Uma de suas alegações era a de que havia conflito entre os horários da pós-graduação e da escola e que, por isso, as normas do PEI não me permitiriam dar continuidade aos estudos. 

As normas do PEI também não previam aulas remotas, mas na emergência de uma pandemia de proporções globais, muitos profissionais se viram diante da necessidade de repensar e adequar sua prática: afinal, se assim não fosse, todos os professores do PEI estariam trabalhando na ilegalidade, não é mesmo? Eu não podia estudar e trabalhar, mas ele podia cursar o mestrado, lecionar na universidade e ser diretor de uma escola que, sob a égide do PEI, tinha como prerrogativa o Regime de Dedicação Plena e Integral. Concluí que eu não podia me tornar mestre porque não sou um homem branco

À época eu estava afiliado à Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Contatei a associação em busca de apoio, mas não obtive retorno. 

Dois anos depois, vivi uma experiência humilhante na universidade. Reproduzo aqui o texto que mantive em minha dissertação de mestrado como denúncia permanente: 

No dia 4 de agosto de 2022 compareci ao campus Guarulhos da Unifesp para retirar o bilhete único de estudante. O atendimento havia sido agendado previamente. A equipe de segurança tentou me impedir de acessar a unidade, mesmo diante da documentação que comprovava meu vínculo estudantil. Sob a falsa alegação de uma recente invasão, o chefe da equipe de segurança foi acionado para me “acompanhar” até a sala da secretaria do programa de pós-graduação ao qual eu estava matriculado. A suposta invasão não foi comunicada à comunidade acadêmica no site ou por e-mail, tampouco os novos “protocolos de segurança”. A violência simbólica não é menos danosa do que a violência física. Contudo, as denúncias só causam impacto quando um corpo negro jaz, sem vida. A direção administrativa da EFLCH negou por duas vezes as denúncias feitas por meio do portal Fala.BR. A direção acadêmica da EFLCH, a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – à qual eu estava filiado – e o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Unifesp omitiram-se em relação ao caso, decidindo deliberadamente posicionarem-se contra a vítima. 

Penso que, assim como o humorista e músico Eddy Júnior, o jogador de futebol Vini Jr. e Davi Brito, participante da última edição do reality Big Brother Brasil (só para mencionar alguns poucos casos isolados - contém ironia), experimentei a violência. Esse é o elemento generalizável da experiência particular, do acontecimento, o que permite que eu me identifique com essas histórias. Contudo, talvez porque a experiência do acontecimento também tenha a dimensão da singularidade, o meu caso não teve repercussão, e a comunidade negra decidiu se calar. Imerso em um limbo racial, a pergunta que ecoa é a seguinte: e eu, não sou também um homem negro? 

No texto Racismo e Cultura, Fanon faz a seguinte afirmação: 

Diz-se correntemente que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade [...]

Reconhecendo as limitações de qualquer raciocínio que parta de um caso particular com a pretensão de oferecer um modelo explicativo abrangente, e assumindo abertamente este risco, eu me pergunto se as pautas identitárias não nos colocaram uns contra os outros, conduzindo-nos a uma reflexão perigosa segundo a qual alguns podem ser considerados mais negros do que os outros e, portanto, mais dignos de apoio. Creio que é o momento de refletirmos sobre as repercussões do racismo também na sociabilidade entre indivíduos da comunidade negra, visto que se trata de um elemento estrutural e estruturante das relações e subjetividades.